Itamar Vieira Junior confidencia que, ao viver certas histórias, às vezes, sente-se um escritor miserável. Isso porque ele não consegue, na escrita, acompanhar a vida. Ela, a vida, “é muito mais inventiva,” declarou o autor de mais de um milhão de livros vendidos, em entrevista recente. Suas palavras me fizeram pensar em outra questão: o quanto a ficção, frequentemente, revela verdades muito mais profundas do que a própria História Oficial. Seus romances – “Torto arado” e “Salvar o fogo” -, dois dos livros mais lidos pelo público brasileiro, são os responsáveis por trazerem à tona essas minhas reflexões.
No romance de estreia, o escritor baiano traz uma representação marcante dos descendentes de escravizados em uma luta contínua pela sobrevivência e por direitos, mesmo após a abolição. Já em “Salvar o fogo”, a narrativa gira em torno de uma família de raiz afro-indígena, moradora de um povoado que resiste aos desmandos da Igreja e ao descaso do Estado. Além disso, os dois títulos apresentam personagens femininas que carregam o peso da família e da comunidade em circunstâncias de enorme desigualdade e violência. Em um cenário profundamente marcado pelo colonialismo e pelo patriarcado, Bibiana, Belonísia e Luzia desempenham papéis fundamentais.
O escritor baiano é um dos convidados deste mês do Clube de Leitura do CCBB, onde ele e Jeferson Tenório debaterão as heranças hereditárias de Zumbi em suas narrativas. Esse é, inclusive, o assunto que abre esta entrevista, concedida na noite da última quarta-feira. Itamar Vieira Junior conversa com a coluna Sala de Leitura enquanto celebra a presença de “Salvar o fogo” entre os cinco finalistas do Prêmio Jabuti de 2024.
Debate sobre as heranças hereditárias de Zumbi
O Clube de Leitura CCBB será realizado na próxima quarta-feira, às 17h30, no Salão de Leitura da Biblioteca Banco do Brasil, localizada no CCBB Rio. Para participar, os interessados devem retirar o ingresso na bilheteria do CCBB RJ ou no site bb.com.br/cultura. Quem também estará no encontro de novembro é a poeta e escritora Elisabeth Monja.
Marisa Loures – Que papel você acredita que a literatura pode desempenhar ao representar personagens e comunidades que historicamente têm suas vozes abafadas? E como essa insubordinação social que você evoca em “Torto arado” reverbera nas questões sociais e raciais do Brasil contemporâneo?
Itamar Vieira Junior – A literatura é a expressão da arte escrita de uma sociedade. Numa sociedade democrática há de se esperar que essa expressão represente sua diversidade étnica e cultural. Desejamos representatividade de personagens, histórias e autores. “Torto arado” tem uma trama inspirada na luta de comunidades quilombolas do país. É um momento novo de nossa história em que novos atores políticos são reconhecidos como sujeitos de direito e se firmam no panorama social brasileiro.
Em conversa com a jornalista Adriana Carranca no podcast “Lugar de escuta”, você disse que, ao viver certas histórias, às vezes, se sente um escritor miserável porque não consegue acompanhar a vida. Isso porque, ela, a vida, é muito mais inventiva. Isso me fez pensar em outra questão: o quanto a ficção, às vezes, revela verdades muito mais profundas do que a própria história oficial. E seus livros são um exemplo disso…
A ficção se ocupa da dimensão subjetiva da vida humana. Daí a oportunidade que tem de revelar as subjetividades de homens e mulheres, suas intimidades e seus anseios. As palavras escavam uma paisagem interior, coisa que poucas expressões artísticas conseguem fazer com a mesma profundidade e intensidade. Sempre digo que podemos nos especializar em muitos temas, e há grandes estudiosos que nos revelam muito sobre a história humana. Mas se quisermos chegar às camadas subjetivas, e por isso profundas da existência, a ficção pode nos permitir imaginar mil e uma experiências.
E você evita cair em um tratamento paternalista dos personagens, uma abordagem que muitas vezes permeia a ficção sobre populações desprivilegiadas. Que caminho você buscou percorrer para retratar essas vidas com dignidade e autonomia, oferecendo uma visão genuína sobre os trabalhadores rurais, sem a idealização ou um viés distante que poderia reduzir suas histórias?
Aproximar a literatura da vida, com todas as suas contradições, é a melhor maneira de se afastar das soluções simplistas. Tentei, não sei se consegui, mas tentei.
– Em “Torto arado” e “Salvar o fogo”, vemos personagens femininas que carregam o peso da família e da comunidade em circunstâncias de enorme desigualdade e violência, ao mesmo tempo em que buscam resgatar suas raízes e construir formas de resistência. Como você vê o papel dessas mulheres — Bibiana, Belonísia e Luzia — na formação de laços familiares e comunitários, especialmente em um contexto em que elas enfrentam marcas do colonialismo e do patriarcado?
Num mundo que olha criticamente para o legado da colonialidade, que persiste em nosso tempo, as mulheres devem ser vozes e contraponto ao projeto colonial patriarcal – já que o colonialismo foi projetado e executado por homens. Nas comunidades camponesas, as mulheres exercem um papel de liderança já há algum tempo, e as histórias precisavam refletir isso. As personagens de “Torto arado” e “Salvar o fogo” espelham a vida das mulheres do campo de nosso tempo.
“Torto arado” alcançou uma recepção extraordinária e consolidou você como uma voz importante na literatura brasileira, criando naturalmente uma expectativa em torno de “Salvar o fogo”, que figura entre os finalistas do Prêmio Jabuti. Ao construir essa nova narrativa, quais desafios surgiram para manter a autenticidade de sua voz literária sem se deixar influenciar por essa pressão?
Conduzi minha escrita com muita tranquilidade. Poderia ter sido diferente dado o sucesso e o alcance inesperado de “Torto arado”. Precisei deixar tudo o que acontecia com o livro fora do meu ambiente familiar, para que eu pudesse me mover com interesse genuíno no meu projeto literário, que é maior que qualquer livro.