“Por que ‘Memórias póstumas de Brás Cubas’ é a obra mais importante da literatura brasileira?” O professor do Curso de Letras, da Universidade Federal de Alfenas (MG), Eloésio Paulo, lança essa pergunta ao iniciar uma resenha do livro que marcou o início da fase realista do Bruxo do Cosme Velho. “Nada é simples quando se trata de Machado de Assis; mas podemos começar pelo mais óbvio: a ousadia”, responde Eloésio, que, em sua empreitada crítica, teve que cumprir a difícil tarefa de escrever um texto, situado entre a resenha e a crônica, limitado a 2.599 caracteres. Missão árdua, considerando a complexidade de uma publicação narrada por um defunto-autor que ama provocar o leitor. Como o resenhista mesmo diz, “é necessário certo preparo para o ler.”
Contudo, o desafio de equilibrar profundidade e concisão não se encerra nessa apreciação da obra de Machado de Assis. O professor enfrentou essa dificuldade inúmeras vezes, desde o momento em que foi convidado a escrever uma coluna semanal na revista “Pessoa”. Segundo ele, tal convite, na verdade, veio atender a uma necessidade antiga. Ele foi professor de Literatura do Ensino Médio durante 15 anos e sempre desejou que existisse um livro que fosse uma espécie de guia crítico e sucinto para docentes que lecionam literatura, mas que não têm muito tempo para ler todos os títulos considerados canônicos. Daí foi um pulo para a publicação de “201 romances brasileiros em cinco minutos” (Sic Edições, 256 páginas), seu mais novo lançamento.
“A coluna tinha esse cabalístico limite de caracteres. Isso, a princípio, me incomodou, mas depois eu passei a achar um desafio muito interessante: como falar de ‘Grande sertão: veredas’ no mesmo espaço gasto para ‘A moreninha’? Penso que ter estabelecido um gênero situado entre a resenha e a crônica resolveu, na medida do possível, o impasse. Porque dá para ler cada texto como literatura, pura e simplesmente, mas ele contém os dados minimamente exigíveis para a pessoa ter uma ideia do que é aquele livro: personagens, enredo, linguagem. O tempo todo me equilibrei entre o esquematismo e a máxima densidade informativa que achava poder obter em cada caso, sem esquecer situações que particularizam a obra e o autor.”
“201 romances brasileiros em cinco minutos” tem prefácio do escritor Luiz Ruffato e apresenta uma série de resenhas dos romances considerados mais relevantes e publicados no Brasil a partir do ano de 1843, a começar por “O filho do pescador”, de Teixeira e Souza, terminando com “Sexo”, de André Sant’Anna. Eloésio de Paulo é mineiro, de Areado. É professor, poeta, ensaísta e crítico literário.
Marisa Loures : Que critério você seguiu para selecionar os 201 romances? E por que 201?
Eloésio Paulo: O primeiro critério foi o mais óbvio: o cânone. Existem livros que não poderiam, de jeito nenhum, ficar de fora de uma lista assim. Em segundo lugar, entrou uma régua mais pessoal, mas não por isso contaminada de subjetividade. Eu incluí livros que acho muito ruins, mas que têm representatividade. O número 201 foi decidido para sinalizar que o trabalho poderia continuar, chegar até 300, por exemplo, mas precisava acabar um dia. E decidi, tendo chegado a 200, que o conjunto era suficientemente representativo do romance brasileiro. Quanto à organização, resolvi dispor em ordem das datas de publicação, o que me pareceu o critério que mais facilitava a vida do leitor.
Luiz Ruffato, no prefácio, relaciona seu trabalho ao pioneirismo de Otto Maria Carpeaux. Como você recebe essa comparação e de que forma ela impacta a recepção do livro?
A comparação me honrou demais, porque sou grande admirador do Carpeaux como crítico e como figura humana. Eu tendo a pensar que, vinda de meu velho amigo Ruffato, para quem vale a mesma admiração de minha parte, a comparação pode funcionar como uma importante credencial. E torço para não decepcionar nenhum profundo conhecedor do trabalho crítico do Carpeaux.
Segundo Ruffato, você “confronta os medalhões com a mesma honestidade com que enfrenta os menos conhecidos. Assim, redefine o lugar de algumas obras, redimensiona outras, redescobre outras mais.” Alguma surpresa ou redescoberta marcou esse processo?
Muitas! Surpresas para melhor e para pior, inclusive nas releituras. Há livros que li agora pela quarta ou quinta vez e cresceram com a nova releitura. Caso especial, para mim, de “Esaú e Jacó” e “Memórias sentimentais de João Miramar.” Outros que, relendo, a gente descobre defeitos que não tinha notado antes. E alguns que li pela primeira vez e foram gratas surpresas. No capítulo das decepções, eu destacaria “Kalum”, de Menotti Del Picchia, que não esperava ser tão mal-ajambrado. No capítulo das gratas surpresas, “Hóspede”, de Pardal Mallet, de que nem tinha ouvido falar e que me pareceu merecer mais atenção da crítica e dos leitores em geral. Para falar de escritoras, sempre me surpreendo, ao reler “O quinze”, com a qualidade da ficção de Rachel de Queiroz ainda mocinha, e fiquei frustrado por não encontrar uma evolução daquela qualidade no “Memorial de Maria Moura”.
Seu estilo mescla humor e crítica. De que maneira esse tom contribui para engajar leitores de diferentes perfis?
Eu penso que o registro acadêmico, predominante nos escritos sobre literatura, não atrai muitos leitores fora da academia. Mas esse meu modo de escrever, também, veio da experiência jornalística e dos muitos anos em que trabalhei tentando trocar em miúdos, para quem não as havia lido, as grandes obras da literatura brasileira. Isso como professor e como resenhista de jornal. Gosto muito de escrever resenhas, mas não artigos acadêmicos.
A seleção abrange desde clássicos até obras mais contemporâneas. Que transformação na forma, nos temas e na representação da sociedade você identifica ao longo dessa evolução do romance brasileiro?
Ótima pergunta. Uma constatação, que eu acho que transpira dessa sequência de textos, é que a forma romance evoluiu bastante na primeira metade do século XX e chegou a seu auge nos anos 1950, assim como boa parte da cultura brasileira. Sempre penso, desde muito jovem, que isso se explica pelo fato de que estávamos deixando de imitar a cultura francesa e ainda não havíamos começado a imitar a norte-americana. Isso quanto à forma. Quanto à representação da sociedade, a Ditadura Militar forçou uma ruptura que, a longo prazo, teve efeitos muito ruins, de maneira que a proporção de escritores de qualidade começou a diminuir. E isso, na minha opinião, se acentuou a partir dos anos 1980. Daí a representação das últimas décadas do século XX ser um pouco rarefeita no meu livro. O que não tem nada de casual, nem foi porque eu estivesse cansado de ler. Mas é preciso dizer que alguns livros mereciam ter entrado e ficaram de fora em nome da variedade e da representatividade.
Segundo você, os romances do século XXI ficaram fora do escopo da obra devido à ausência de um crivo crítico consolidado e à falta de decantação pelo tempo, o que poderia comprometer os critérios adotados. Essa “presumida segurança” ainda será um desafio para análises futuras? Qual é a importância do tempo no amadurecimento do olhar crítico sobre essas obras?
A presumida segurança eu penso que nasce, antes de mais nada, do volume e da amplitude das leituras. Como já disse, considero que o nível médio da ficção brasileira começou a cair depois de ter atingido aquela “consolidação da média” a que Antonio Candido se referiu num ensaio. Mas, sim, a passagem do tempo é importante em dois sentidos: no sentido de permitir certa decantação crítica da obra e no sentido de apagar razões puramente de mercado ou ideológicas que, num determinado momento, fizeram muita gente pensar que tal ou qual obra é importante quando, na verdade, elas se tornaram mesmo boas mercadorias para suas editoras e bandeiras políticas para seus admiradores.
E você mencionou que o livro pode ser útil para professores que, muitas vezes, precisam trabalhar obras que não tiveram a oportunidade de ler. Inclusive, como você disse, esse era o seu caso quando atuava em cursos pré-vestibulares. No entanto, sabemos que o ideal é que o professor tenha uma leitura mais aprofundada para enriquecer o debate em sala de aula. De que forma equilibrar essa necessidade de profundidade com a realidade prática de quem ensina?
A situação do professor brasileiro está muito longe do ideal, tanto em termos da formação intelectual como das condições de trabalho. Então, eu procuro oferecer com meu livro um mapa e uma espécie de pronto-socorro, que, para mim mesmo, teria sido muito útil quando lecionava no Ensino Médio. Agora, sempre existem os mais estudiosos que vão encontrar tempo e modo de se tornarem conhecedores profundos de literatura. Lecionar hoje em dia é um ato de heroísmo, todas as condições são adversas. Eu procurei dar uma contribuição a quem ainda não teve tempo de ler tudo o que deveria ter lido, e ao mesmo tempo ajudar leitores em geral a navegar por um mar ultimamente atravancado de interesses ideológicos e pela pura e simples precariedade do nosso ensino, terrivelmente nivelado por baixo pelo Enem. Apesar das boas intenções.