Tanta fé: o sagrado nos 10 m² de Cida e Rafaela
A história da Casa do Caboclo, a mais antiga loja de artigos religiosos, criada por um pioneiro radialista e resistente por quatro gerações
O Preto Velho recebe logo na porta, à esquerda. “Esse caminho formoso é de Pai Tomás, toda pedra no caminho vai ficando pra trás.” Ao seu lado, a Preta Velha. “Lá no bambuzal ventou, Vovó Benedita chegou.” Logo acima, a Pomba Gira, cigana de fé que caminha a pé; Zé Pilintra, malandro de axé; e Exu Tranca Rua com sua capa. Mais a frente, caboclos e ciganos. Lado a lado, São Jerônimo e São Jorge. Guias, óleos, plantas, vasos de barro para os orixás, pratos e canecas de alumínios para os pretos velhos, velas, búzios e muitos outros sagrados itens ocupam, ecumenicamente, os cerca de dez metros quadrados da mais antiga loja de artigos religiosos da cidade. Um perfume preenche o espaço. Incensos e defumadores, dentro de suas caixas, aponta Maria Aparecida Lopes Furtado, que com tamanha simpatia logo se transforma em Cida, uma católica frequente nas missas da Igreja de São Sebastião e da Catedral. “Não acendemos nada. Nem sentimos o cheiro mais. Quando chegamos em casa é que percebemos que a roupa ficou com o cheiro da loja”, ri.
Quarta geração da família que ergueu a Casa do Caboclo, na Avenida Getúlio Vargas, Rafaela e a irmã Carolina cresceram em meios aos pais e mães de santo, principais frequentadores do lugar, cuja placa, pintada em 1996, ainda ostenta o número telefônico com apenas sete dígitos. Carolina tornou-se professora. Rafaela herdou a paixão e o tino da mãe. Mas seguiu o próprio caminho religioso, distante do universo de simbolismos. “Sou messiânica, minha religião é japonesa, oriental, não tem nada a ver com a loja. Estou aqui por conta da tradição familiar. É uma afinidade que chegou até a minha geração”, comenta a mulher de 33 anos, que mesmo alérgica a incensos, graduada em pedagogia e proprietária de uma franquia de serviço de limpeza, escolheu não abandonar a criação do bisavô.
Saravá
“A loja foi fundada pelo senhor Salvador de Moura Fontes, há 72 anos. Esse pedaço todinho é da família Surerus. Ele tinha um filho, Walter de Moura Fontes (funcionário público), e foi a esposa dele, dona Carolina, quem deu continuidade. Depois, meu esposo, que já faleceu, eu e as meninas ficamos tomando conta”, conta Cida, resgatando a história de Nhô Turiba, apresentador do Alma de Caboclo, pioneiro na divulgação do sertanejo nas rádios e um dos maiores sucessos da Super B-3. Famoso, Salvador abriu uma casa com o nome da atração, que em 1969 mudou-se para a Rádio Industrial e, três anos depois, chegou ao fim, com a morte do radialista. “A loja era grande, vendia discos usados, revistas, instrumentos musicais, era mais voltada para outra área”, observa a bisneta Rafaela. O caboclo a que Nhô Turiba se referia, no entanto, fazia referência ao sertão, mas rapidamente identificou-se com a umbanda na qual professava. E a loja, pouco a pouco, mudou seu perfil. Dona Carolina, nora de Salvador, seguiu o negócio. “Minha sogra tinha um ritual de ter uma imagem, acender uma vela, colocar um copo, sal grosso, muitas simpatias que respeito, mas não faço”, recorda-se Cida, segunda nora na história a herdar o negócio. “Tenho muito carinho com os pais de santo, com os fregueses. Já quisemos passar a loja, chamamos os filhos e oferecemos, mas ninguém quis. Fomos tocando. Quando peguei a loja era para ter largado e passei uma vida aqui dentro”, emociona-se a mulher casada por cerca de três décadas com Walterley. “Ele era professor de natação no Sport Clube. Eu trabalhava lá, nos conhecemos e nos casamos. Quando viemos para cá, minha sogra já estava adoentada. Assumimos a casa, mas quando ele começou a ter uma vida mais desregrada, nos separamos. Depois de cinco anos, faleceu”, lamenta ela, irmã de cinco, quatro deles médicos. “Sempre tive o complexo de não ter estudado como eles, mas acho que me realizei na mesma medida.”
Amém
Mãe, filha e duas funcionárias dividem o pequeno espaço atrás do balcão de madeira a revelar a passagem do tempo. O fluxo é intenso ao longo do dia na pequena loja alugada de acabamento modesto, prateleiras de metal, e objetos espalhadas pelas paredes e chão. “Hoje temos mais de cem fornecedores. Ninguém imagina que uma loja, pequenininha assim, tem todo esse movimento e possui uma quantidade tão grande de mercadorias”, observa Rafaela, apontando para um público tão diverso quanto fiel. “O público também veio passando de geração em geração. Sempre chega alguém que fala: ‘Ah! Meu avô comprava aqui!'”, conta Cida, que antes viajava para comprar mercadoria e hoje vive a modernização do lugar de tradição. “Agora tudo é informatizado. Fui uma pessoa que aceitou ajuda. Minha outra filha fez administração e foi me ensinando muita coisa. Ela me explicava os termos e me mostrava a importância de coisas como deixar algumas mercadorias próximas do balcão, para não demorar o atendimento. Juntando a minha experiência e a modernização que as filhas trouxeram conseguimos fazer com que a loja continuasse existindo”, pontua, destacando, ainda, a demanda constante. “A mídia ajuda muito”, comenta Rafaela. “O perfume ‘Chora nos meus pés’ passou na novela das oito (‘A força do querer’) e esgotou na loja. Compramos dez dúzias, mesmo assim acabou o estoque. Durante a novela, a procura era muito grande e, agora (que a novela acabou), já diminuiu”, acrescenta, diante de uma das datas mais agitadas para a loja. “A gente se arruma toda para o réveillon, data que, quem fez nada o ano inteiro quer fazer no final de ano. Se falam que para entrar bem tem que acender vela ou levar barco para Iemanjá, muita gente faz, seguindo a tradição”, garante Cida. “Muita gente busca saúde, mas a maioria busca amor.”
Salve
“No princípio, quando me perguntavam: ‘Você tem loja de quê?’. Eu respondia: ‘Tenho um armarinho’. Se eu falasse que era a Casa do Caboclo, logo me rotulavam de macumbeira e coisas do tipo”, recorda-se Cida, que herdou a loja e os preconceitos disparados contra ela. “Muitos passam falando ‘O sangue de Jesus tem poder!’, ou jogam sal grosso na porta da loja”, lamenta, contando de um episódio que viveu na igreja, de as colegas de pastoral virarem-lhe o rosto depois que Cida apareceu na TV, entrevistada por um jornal falando das superstições mais comuns para o réveillon. “Minha mãe, muito religiosa, não entrava aqui e sempre me pedia para fechar a loja”, acrescenta, aos risos, a avó de três, que em diferentes momentos questionou a opção profissional. “Vendo uma vela como se vendesse um pano de chão. Vendo caixão pequeno, vodu, mas procuro não me envolver”, comenta ela, que vende também as dezenas de velas vermelhas consumidas pela Igreja Melquita. “A loja foi tudo na minha vida, meu ganha-pão, permitiu que as meninas tivessem um bom estudo, que comprassem, cada uma, um apartamento. Temos muita gratidão. Eu já me aposentei, mas gosto de vir”, diz a empresária que chegou a abrir uma filial no Manoel Honório, mas não deu certo. Não por falta de fé. A casa que é do caboclo é também dos orixás, dos santos e de muitos outros sagrados. “A gente tem a nossa proteção também”, pontua Rafaela, que, da mesma forma que a mãe, optou por manter na porta do lugar o que a fé de muitos de seus frequentadores defende como ideal. “Dizem que as lojas de umbanda devem ter os dois pretos velhos na porta para a segurança do estabelecimento”, justifica Cida. “Aqui teria que ter um Exu também, mas se eu colocasse nem daria para entrar.”