Mãe de santo abre as portas de seu terreiro e de sua história
Mãe de Santo Iracema abre as portas de seu Centro Espírita Santo Antônio de Umbanda, um dos mais antigos de Juiz de Fora, e conta sua história de fé, resiliência e força
O teto é colorido por tiras de papéis coloridos. A alegria dos pedaços que tremulam ao menor vento se soma à ternura das velas acesas. A parede é branca e toda ela preenchida por bancos de alvenaria. Como uma calçada, o cimento rodeia uma área retangular de chão batido. Há uma energia que é não somente da relação com a terra, mas também da delicadeza das mãos que por ali passam. De um lado está uma grande porta na cor azul. De outro está o altar, com santos, copos de bebidas e velas. “Tem Santa Rita, São Jorge, Sagrado Coração de Jesus, São Sebastião, Nossa Senhora das Graças, Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora do Montserrat, Santo Expedito, tudo quanto é santo. Para nós são os orixás”, explica a mãe de santo Iracema Salomé Lopes Cassimiro, a Cecema, abrindo as portas de seu Centro Espírita Santo Antônio de Umbanda, no Bairro Dom Bosco.
É segunda-feira, dia de trabalho. Iracema, o marido e a irmã Carmen limpam tudo, trocam as bebidas nos copos e acendem as velas. Em dias como esse, à noite, às 20h30, os médiuns se colocam ao redor do chão de terra e os fiéis permanecem sentados nos bancos que circundam o espaço. Uns procuram ajuda, outros, orientação. Todos, o equilíbrio pela fé. Geralmente o marido, a irmã e uma sobrinha de Iracema tocam atabaque durante os atendimentos. É ela, a chefe do terreiro, quem abre os trabalhos, permitindo a entrada do público. Quando a sessão começa, as peneiras da porta e próxima ao altar são viradas juntas, a fim de trazer boas energias para o lugar. Ao término, são desviradas.
“Às vezes tem tanta gente que acho que não vamos dar conta de olhar todo mundo, mas, graças a Deus, ficamos até que todos sejam atendidos”, diz ela, que costuma sair por volta de 1h da madrugada. Na primeira sexta-feira do ano, o terreiro retoma o funcionamento, após o recesso das festas, fazendo a limpeza geral do local, com pólvoras e velas, riscando todo o espaço, de um canto a outro. São muitos os rituais na casa que de um lado da entrada guarda a imagem de São Cosme e São Damião, e, do lado oposto, sete troféus, lembrança de outros tempos. Um dos mais antigos terreiros de Juiz de Fora, a instituição contava com um time de futebol e um grupo de folia de reis, ambos extintos com o tempo. Iracema lembra que o pai, o fundador do lugar, montava uma grande árvore de Natal e comprava presentes para as crianças da comunidade. Mantém-se ainda hoje a distribuição dos saquinhos de bala, cerca de 500 anualmente todo 27 de setembro. Todo o resto está como o pai deixou.
‘Salve a umbanda, vamos saudar’
Iracema é a 11ª filha de Manoel e Geralda. Contudo, foi a quinta a vingar. Todos os outros seis se foram cedo, cedo. “Enquanto meu pai não fez o terreiro dele, foi perdendo os filhos. Quando meu irmão mais velho adoeceu, meu pai o levou numa senhora para benzer, a dona Mendoca, que morava no caminho entre São Pedro e Borboleta. Ela disse que era para o meu pai voltar com o menino e que só ele iria curar o filho dele, que ele tinha que abrir a casa e fazer caridade”, conta a caçula da família, hoje aos 71 anos. Ao regressar para casa, o pai rezou o próprio filho, e o garoto dormiu. “Minha mãe ficou apavorada. Ela parecia que não acreditava muito na espiritualidade e achou que tivesse matado o menino”, narra Iracema. Nascido em Bias Fortes, Manoel vivia numa família católica e havia sido, até, coroinha na igreja de sua comunidade. No dia de Santo Antônio, há 88 anos, o patriarca inaugurou seu terreiro, com paredes de pau-a-pique e telhado de sapé no terreno de casa, na esquina da Rua Pirapora, num Dom Bosco ainda coberto por mato. “Nem água tínhamos em casa. A gente ia lavar roupa lá na bica do Cascatinha”, recorda-se Iracema, que tinha apenas 12 anos quando o pai se foi. “Quem ficou tomando conta do terreiro eram meus dois irmãos mais velhos.” Isaías começou a receber o santo com apenas 7 anos e Israel, com 13. As meninas, no entanto, precisavam aguardar a chegada dos 14 para participar das sessões. Iracema desenvolveu a espiritualidade, mas o irmão fechou-lhe o corpo, para que ela trabalhasse apenas como cambone (auxiliar). Os guias retornaram com a morte do irmão.
‘Ogum-nhê-ô’
“Só assumi porque quando éramos crianças meu pai sempre falava que fez isso para salvar os filhos e enquanto tivesse um filho vivo o terreiro não poderia fechar. Meu irmão faleceu, e nós ficamos parados seis meses sem abrir”, narra Iracema, que sob a promessa de ajuda da irmã Carmen decidiu chefiar o lugar. E quando forem embora? “Aí acho que acabou, porque nenhum dos filhos quer”, lamenta a mãe de santo, que dos três filhos, uma é catequista e não entra no terreiro, o outro, sem religião, também não. Uma terceira, evangélica, não frequenta o terreiro, mas entra se preciso for. Das três filhas de Carmen, apenas uma ajuda nas sessões. Enquanto contam, os netos trigêmeos de Carmen e um dos dois netos de Iracema brincam no quintal, correm e entram no terreiro. Parecem se esconder de alguma brincadeira. “Aqui não é lugar”, alerta Carmen. E os meninos saem. Na infância de Carmen e Iracema, o local também era visto com naturalidade e certa curiosidade. Não podiam mexer em nada, mas observavam. O terreiro é o lugar da fé. “Morei na Vila Ideal e no Belo Aurora e vinha. Ia embora à meia-noite ou à 1h. Nunca deixei de vir”, orgulha-se a mulher, que nunca permitiu-se desrespeitada em sua crença. “Meu primeiro marido só bebia. Às vezes, eu vinha no Centro e quando chegava em casa ele não deixava eu entrar. Quando fomos morar no Belo Aurora, na casa que eu ajudei ele a comprar, ele não quis mais que eu viesse ao Centro. Um dia cheguei em casa, e ele falou: ‘Não vou abrir a porta, não. Volta para a pu***** em que você estava!’. Eu virei um bicho. Pedi a força de Ogum, do meu povo, meti o peito na porta e passei em cima dele e da porta. Ele foi na cozinha, pegou uma faca e veio para cima de mim. Pensei: ‘Estou roubada! Ele vai me matar!’. Quebrei uma garrafa que estava no chão e parti para cima dele. Não tenho medo de nada. Nunca tive. Só tenho medo de aranha. Se ver uma, sou capaz de cair para trás”, ri. Naquele dia, o homem saiu para chamar a polícia. Iracema ficou aguardando do lado de fora. Ele voltou sozinho. Ao amanhecer, ela saiu de casa.
‘Se suncê precisá’
Iracema estudava quando o patriarca morreu. “Fui trabalhar em casa de família, sendo babá. Mudei de emprego e passei a ser arrumadeira. Um dia, a patroa saiu e me deixou com o filho dela. Ele pediu: ‘Iracema, vamos fazer comida, a mãe está demorando muito. Eu te ajudo!’. Fomos para a cozinha. Eu fiz arroz, feijão, uma carne moída que tinha e ele fez a salada. A dona chegou e falou: ‘Você não vai mais ser arrumadeira, não. Você vai cozinhar!'”, conta ela, que tempos depois trabalhou na cozinha do Hospital São Marcos, seu último emprego. Hoje, casada novamente, dedica-se ao terreiro, à família e às atividades sociais do Grupo Espírita Semente, de orientação kardecista, que frequenta com a irmã. Por conta de um problema na visão, não incorpora durante as sessões. Seus atendimentos, faz na secretaria. “Todo mundo quer falar comigo. Eu atendo e se tiver que ver alguma coisa vejo no copinho de água”, diz, apontando para um copo ao lado de uma imagem de uma Preta Velha, popular entidade da Umbanda que se apresenta como uma idosa africana. “Quando estou incorporada, parece que durmo, não sei de nada do que se passa no terreiro”, diz a mulher, afirmando nem sempre estar acompanhada de seus guias. “Se vou a uma festa, não tem povo atrás de nós, não”, brinca ela, cujos orixás são Cacique Pena Dourada, Ogum de Ronda, Vó Maria Baiana, Vô Benedito e Pena Verde. Preconceito religioso, ela não se recorda de ter sofrido. Sua fé é sua fortaleza. E sua casa, porto seguro. “Aqui tem muita proteção e força. Sexta-feira passada uma mulher chegou aqui carregada por duas pessoas, estava vomitando e saiu andando. Segunda ela, voltou toda risonha. Fico feliz de poder ajudar.”