Zé Alguém: Tito saiu de Nova York e se tornou artista no Brasil
Nascido no Bronx, casado no Rio de Janeiro e vivendo em Juiz de Fora, Tito tornou-se autor de um dos personagens mais famosos do grafite no país, o Zé Ninguém, síntese da própria formação
A mãe trazia nas mãos, despretensiosamente, uma pilha de quadrinhos usados, oferecidos por um zelador vizinho. Estava ali o alicerce de Alberto Serrano, para alguns Albertito e, para o mundo, Tito. “Li 20 vezes cada um e foi aí que me interessei pelas coisas. Foi quando me toquei que a cidade onde acontecia aquilo tudo era logo ali, era só pegar um trem e eu chegava lá, onde está a mansão dos Vingadores, onde está o Homem-Aranha pulando para cima e para baixo. It’s amazing! (Espetacular!)”, recorda-se o nova-iorquino, então um menino, ainda pouco familiarizado com as palavras. O que significa isso, pai? E isso, mãe?, perguntava o garoto. Quando só recebia negativas, recorria aos dicionários. Assim, conheceu a língua e ganhou o mundo. “Uma pessoa do Bronx não ia para a cidade, para o downtown. Lá as pessoas não se misturam. Graças aos quadrinhos, fui explorar a cidade, procurar as pessoas”, conta ele, que reconheceu ainda mais as raízes quando pisou numa Copacabana igualmente colorida.
“Minha experiência aqui no Brasil me fez aprender sobre quem eu sou. Nos Estados Unidos, sou porto-riquenho, apesar de ser nascido nos Estados Unidos. E Porto Rico faz parte dos Estados Unidos. Na minha família, todo mundo é americano, mas lá somos porto-riquenhos, por conta dos nossos antepassados. Fora dos Estados Unidos, então, o que falo? Sou americano? E o tom da minha pele? Se vou a Porto Rico, sou de fora, nem falo espanhol direito. Sendo assim, falo que sou do Bronx. Isso me forma”, define o criador do personagem Zé Ninguém, que se espalha por mais de 150 muros cariocas, de Norte a Sul e chegou a Londres. Tendo como referências os quadrinhos recolhidos pela mãe e o grafite apresentado por um carioca, Tito fez-se artista no Brasil.
“Ana, meu amor, tô no Rio pra te achar”, diz o personagem sem camisa, criado em grafite, com bermuda azul e chinelo de dedo, que sai às ruas acompanhado por seu cão e à procura da amada. Retrato sensível dos que vivem o não-lugar, Zé fez de Tito alguém capaz de falar do outro e também de si. Seu personagem é o imigrante nordestino e também o pai, porto-riquenho chegado ao Bronx na adolescência. “Ele sempre foi muito latino, vestindo-se assim, com shortinho cortado e chinelo para varrer a varanda. Sem camisa no verão. Pode ser muito familiar para mim e para as pessoas no Brasil. Além disso, ele é imigrante no Rio de Janeiro, e eu também. Estamos explorando o mesmo lugar juntos.”
‘Meu amor’
O grafite era tudo à volta. “Os únicos profissionais de arte que eu conhecia eram os grafiteiros, o único tipo de arte que eu via era o grafite”, lembra-se Tito, que, a despeito dos sonhos de ganhar a vida desenhando o Homem-Aranha, dividia-se como office boy e divulgador de festas. “Queria ter entrado na School of Visual Arts. Era difícil trabalhar sabendo que tinha outro propósito na vida”, comenta. Quando trabalhava numa loja de cópias, em 2001, ele conheceu a designer carioca Flávia Oliveira. Enquanto ela era a “moça dos computadores”, Tito abria a porta, carregava as caixas de papel, servia café para o chefe e atendia professores e alunos do NYU (New York University). “Era na 8th Street, entre a Broadway e a 5th Avenue. Eu e meus amigos íamos lá, porque era a melhor parte da cidade. De repente me vi trabalhando lá e pensava: ‘I love this!’ (Amo isso!)”, lembra. O namoro rendeu um convite para que conhecesse o Brasil. Na primeira viagem, lembra, foi a Búzios e, no último dia, à Escola de Artes Visuais Parque Lage. “Eu queria ser artista de todo o meu coração. O dólar estava forte. E pensei: será que vale ver qual é? Quando voltamos, rolou o 11 de Setembro e, em dezembro, voltei ao Brasil, fiquei três meses, conheci a escola direito, vim para Juiz de Fora passar o Natal. Voltei, dei um beijo na minha mãe e me mudei para o Brasil definitivamente. Estou aqui até hoje”, narra, aos 40 anos, o homem que, na famosa escola do Jardim Botânico aprendeu a pintar com Orlando Mollica. “Ele me ensinou a pensar como artista.”
‘Tô no Rio’
O grafite era uma assinatura inscrita num muro ou nos trens. “Quando eu era adolescente no Bronx, fazer mural não era visto como coisa de grafiteiro, mas de artista. E ser artista era quase um xingamento”, recorda-se Tito, que prepara um livro sobre as raízes do bairro onde estão suas próprias raízes. Forjado durante o New Deal, quando o Governo decidiu o que merecia investimentos e o que serviria aos negros, judeus ou porto-riquenhos, seu Bronx é fruto da desigualdade que Tito aprendeu a reconhecer ainda muito cedo. Até os 10 anos, viveu na porção Sul, famosa por seu antigo cenário de degradação. “Minha avó mora lá desde a década de 1950. Moramos lá até meu pai virar gari, o que lá é um bom trabalho, e minha mãe terminar a faculdade e virar professora (bilíngue para crianças pequenas em escolas públicas). Foi aí que conseguimos (ele, os pais e as duas irmãs) nos mudar para outro lugar no Bronx, que não era a parte mais devastada, mas era a mais condensada, e, portanto, a mais perigosa”, define ele, que depois de sete anos longe do lugar, pegou pela primeira vez numa latinha de spray. “Eu gostava muito da liberdade do grafite, mas faltava a história, e o quadrinho tinha isso. Eu quis juntar os dois. Foi assim que coloquei meus personagens nas ruas, vivos.” Será que as pessoas entenderiam quadro a quadro? A resposta foi veloz. Se na sua memória era o trem que popularizava as assinaturas feitas com grafite, no presente viu suas criações serem beneficiadas pelas velozes redes sociais.
‘Pra te achar’
O grafite é a democrática arte que ocupa muros de favelas e também lojas conceituadas em ricos bairros. Zé Ninguém está em Ramos e também na Burnside Avenue, no Bronx de Tito. Estava na perimetral derrubada diante da Rodoviária Novo Rio e ainda está num gigantesco painel na Rua Siqueira Campos, em Copacabana, em toda a lateral de um prédio de dez andares. O traço de seu autor está ainda na fachada do prédio de número 61 na Rua Luiz Perry, em Juiz de Fora, onde funciona o estúdio do grafiteiro/quadrinista que há pouco mais de dois anos mudou-se para a cidade da sogra. Buscava qualidade de vida para os filhos e um espaço adequado para desenvolver o próprio trabalho. “Artista não tem licença paternidade, mas eu queria me dar esse luxo”, conta ele, que entrou num período sabático com a chegada da segunda filha, Bella, hoje com 2 anos. O mais velho, Nicolas, tem 8. Na nova cidade, ele começou a escrever o novo livro e se envolveu com o basquete. Faz natação e participa de peladas, ainda. “Com o ‘Zé Ninguém’, eu me cansei intelectualmente e meu corpo sofreu também. Eu rodava a cidade, comendo PFs em qualquer lugar, biscoitos, salgados e tomando mate. É diferente de fazer quadrinhos numa mesa. Eu estava no meio da rua, da poeira, sob o sol. Engordei 20 quilos e agora tento me equilibrar”, afirma o autor de “Zé Ninguém”, seu único título lançado por uma editora (Edições de Janeiro), além dos zines e livretos que publicou por conta própria. Como seu Zé, Tito também vive à procura da felicidade.