Todo o amor e o poder de Baby Mancini
Terceira Miss Brasil Gay da história do concurso, cabeleireira resgata trajetória trilhada de salto alto e strass
Arruma esse cabelo menino, dizia o pai. E o menino passava gel nas madeixas louras de fios longos. Bozzano, o nome do frasco específico para homens. Cruzava a porta, andava alguns passos e lavava os cabelos. Surgia outra. “Eu já me vestia de mulher, gostava de maquiagem e tinha os cabelos maiores. Lembro que nessa época eu comprava tudo escondida e deixava na casa de uma vizinha. Para sair de casa, para o meu pai não implicar, passava gel. Quando chegava na vizinha, lavava o cabelo e me arrumava. Não usava batom, só passava uma sombrinha nos olhos, calçava um sapato com salto anabela, uma calça boca de sino e saía”, recorda-se, aos risos, a mulher que anos antes aprendeu a transgredir. “Saía com minhas primas no Manoel Honório, na praça. O footing era ali. Minhas primas falavam: ‘Olha que rapaz bonito!’. Eu olhava também”, conta. E logo se lembra de mais: “Quando moramos em Guaratinguetá, eu tinha uns 5 anos, e meu pai comprou uma carruagem linda para mim. Eu chorei, porque queria as bonecas das minhas irmãs. Quando voltamos, ele me deu um caminhão. Eu também não queria.” Aos 65 anos, olha para quem deseja e ganha o que pede. Baby Mancini Paiva, tia-avó de quase 30, viveu e ajudou a viver toda a cena LGBT de Juiz de Fora. “Eu vivi. Vivi o auge daqueles grandes bailes do Pão de Açúcar, do Canecão, do Monte Líbano, do Sírio Libanês. Só teve um que fui para não mais voltar. O do Flamengo, que era uma putaria. Os outros eram puro glamour”, lembra a mulher trajando uma calça metade preta e metade com estampa de onça, blusa rendada a dissimular os peitos que por muitos anos desfilaram nus na passarela do samba local e na Marques de Sapucaí. E saltos, altos, sempre altos.
Vestida de tirolesa
A casa de Paulo e Rosinha vivia em festa. Funcionário público federal, contador e dono do restaurante Sol e Lua, na Avenida Getúlio Vargas, o marido da dona de casa, com quem teve oito filhos, promovia batalha de confetes e não aceitava a mesa vazia. “Minha avó paterna, quando chegava novembro, ela ia para a nossa casa e só ia embora em março, quando passava o carnaval. Tinham jantares cada dia na casa de um da família. Minha avó gostava de movimento”, recorda-se Baby, que viveu uma infância vibrante, que, por sua vez, deu lugar à tensão da adolescência. “Eu estava indo mal no colégio. Meus pais me levaram para morar com meu irmão, que era subgerente do Banco do Brasil no Norte de Minas. Lá eu me apaixonei por um usineiro. Então meus pais me levaram no médico que fez o meu parto, que mandou me aplicarem injeções de hormônio masculino. Uma coisa que eu não tinha apareceu: a barba. Mais tarde tive que fazer tratamento para acabar com ela. Naquela época não existia tanta informação, como tem hoje na televisão, nos jornais”, comenta ela, certa de todo o amor dos pais. Sobrava afeto. Faltava o conhecimento, que chegou quando Paulo já havia se despedido. “Quando eu tinha 16 anos, no carnaval, eu estava fantasiada de tirolesa. Meu pai, que não bebia nem fumava, começou a passar mal. Levaram ele para o carro. Quando sentou-se no banco do carona, deu o último suspiro. Teve um infarto fulminante. Ele fazia tratamento de coração há anos, e nós não sabíamos. Ele não gostava de dar preocupação”, emociona-se ela, que há dois anos deu adeus à mãe, aos 93 anos.
Morre Twiggy, nasce Baby
Cabelos, sem gel, sedosos e brilhantes, eram melhores que pincéis e quadros. Aprovada no vestibular, a jovem preferiu ser cabeleireira. “Eu parava na porta dos salões e ficava olhando, e como perto da minha casa tinham muitas moças, eu ia estragando os cabelos delas para poder acertar”, conta ela, que logo conheceu aquele que seria chefe, cunhado e amigo. “Morava no Manoel Honório e eu descia do ônibus na antiga rodoviária. Um dia, encontrei com o Chiquinho (Mota) na rodoviária. Começamos a conversar e ficamos amigos. Dois meses depois, conheci o irmão dele e começamos a namorar. Morei na casa dos pais dele. Ficamos juntos por quase sete anos. Isso, na época, era um escândalo. Eu, modéstia à parte, era muito bonita, com o cabelo lisinho, louro e sempre bem vestida. Fui trabalhar com o Chiquinho. Saí para montar meu salão, primeiro, na Rua Oscar Vidal e depois na Rua Santo Antônio com a (Rua Luiz) Perry”, lembra, até hoje instalada no mesmo endereço, no qual já entrou como Baby. “Eu era magrinha, e parecia com uma modelo da época que se chamava Twiggy. Para todo mundo, eu era a Twiggy. Um dia conheci uma travesti do Ceará que morava aqui. Ela ia para o Rio, e eu a via levar para o salão de um amigo meu umas sete ou oito perucas para pentear. Ela me disse: ‘Esse nome não combina com você. É Baby. Você tem cara de bebê’. Eu não gostei, mas logo depois veio uma novela na qual a Glória Menezes chamava Bárbara e era uma mulher chiquérrima com apelido de Baby. Passei a gostar do nome.” O registro civil ainda carrega um passado distante. Apenas o registro. “Meu avô paterno me chamava de Baby. E quando eu desfilava no carnaval, ele ajudava a separar miçangas na mesa para bordar.”
Miss traje típico, vestido e beleza
Você tem que participar, Baby. Era 1976, quando ela aceitou o convite do amigo Chiquinho Mota para integrar aquele que seria o primeiro e maior concurso gay do país. “No primeiro Miss Gay, a turma da engenharia comentava que iria jogar ovos com azul de metileno nas misses, mas acabou e não houve nada. Foi uma festa na qual foi a clientela toda do salão. As candidatas é quem vendiam ingressos da arquibancada no Sport. Tinha uma cota para cada uma. Desfilei e fiquei em terceiro lugar. No segundo ano, eu era a mais bonita, tinha que ganhar. A vencedora era uma senhora perto de mim. No terceiro ano, ganhei. Era 1979, e a festa já tinha pegado, vinha gente de vários lugares, era glamoroso o concurso. Já tinha Elke Maravilha, Fernando Reski, Edwin Luisi, tudo ator da Globo”, conta ela, que se inspirou em Vera Fisher, Miss Brasil de 1969, e representou, também, Santa Catarina. No ano da vitória, um amigo, gerente da Caderneta de Poupança Delfin, financiou o glamour de Baby. “O conheci no ano do primeiro concurso, e nos tornamos grandes amigos. Na época, usar strass era um luxo, e meu vestido era todo raiado de strass. Usava muito paetê. Quem usava strass era rica. Meu traje típico era de camponesa, com uma roupa armada, um lenço todo purpurinado que veio da Europa, um cesto de flores. Ganhei traje típico, melhor vestido e beleza. Foi um sucesso”, orgulha-se ela, que afastada por 12 anos da festa, retornou este ano, com três vestidos igualmente luxuosos e muitos outros procedimentos estéticos. “No segundo ano do concurso, fiz o nariz. No ano seguinte, fiz de novo. Depois que ganhei o concurso, coloquei prótese de silicone. Até hoje faço procedimentos estéticos. Coloco botox. Há uns quatro meses, fiz bichectomia, laser para melhorar a pele, peeling, skinbooster, que as atrizes norte-americanas estão fazendo agora, com agulhada de vitaminas na pele toda.”
Uma mulher, sempre
“No mundo gay, pode perguntar: quem abriu as portas?”, questiona Baby, para logo responder. “Fui eu. Sempre me procuraram, para saber como tomar hormônio, indicar cirurgião plástico, comprar imóvel, carro. Fora que sempre empreguei travestis”, envaidece-se a mulher que carrega consigo alguns casamentos, muitos namoros, o título de “preferida do Joãozinho Trinta na Beija-Flor”, os desfiles nas escolas de samba do Rio e de Juiz de Fora, muitos amigos, muitos imóveis e uma revolução feita silenciosamente. Tem algo que ainda não tenha conquistado? “A gente sempre deseja, né?! Eu, por exemplo, troquei o carro que vai fazer um ano no mês que vem, mas não era meu desejo. Agora estou desejando comprar outro”, ri. “Trabalho até aos sábados, levo cachorro e tudo mais para o salão. Quando acabo a última cliente, vou para o Rio. Chego lá, tomo banho e me maquio e vou para a Lapa. Em época de carnaval, vou para a Mangueira. Vou dormi 4h ou 5h da manhã. No dia seguinte, vou para a praia cedo”, diz, vigorosa, recusando ter sentido a passagem dos anos. Foram tantas as lutas que mal deu tempo de olhar o relógio. Pouco a pouco, Baby foi tomando espaços e partilhando-os. “Minha transformação foi tão lenta que meu primeiro sutiã foi uma cliente, mulher de um médico, quem me deu. Fui mudando devagar, e, quando viram, eu já era outra. Do salão, passei a frequentar as casas dos clientes. Depois fui para as festas. Teve festas de arromba em Juiz de Fora. E eu era esperadíssima, chegava como uma estrela de cinema, todo mundo olhava. Eu, de peito aberto, levantava a cara e ia. Nunca saí de uma festa sem salto alto. Quando via que não podia beber mais, falava: ‘Vou-me embora!’. Quando o marido de uma cliente me paquerava, eu fingia que não via. Preciso da cliente, não do marido. Ia para essas festas e dançava muito. Como uma mulher. Sempre.”