Sobre pasteis e volta por cima: Leandro divide sua fé na vida
Conhecido por sua Kombi adaptada onde vende pastéis em São Mateus, Leandro conta como acreditou na vida quando recebeu o diagnóstico de um câncer devastador aos 34 anos
A chuva está forte em São Mateus. O trânsito está lento e confuso. O carro passa no trecho inicial da Rua Padre Café e não encontra onde parar. Dá uma volta. No lugar onde costuma parar sua Kombi, Leandro Mendes da Silva encontra motos estacionadas. Decide, então, embicar na pequena vaga, permitindo o tráfego dos carros que fazem fila. Desce do veículo e, sob a chuva, muda uma das motos de lugar, para que caiba no local. Volta para dentro e começa a manobra. O vidro embaça. Ele abaixa a janela e desembaça o retrovisor com um pano. É preciso sair da vaga e refazê-la para caber no diminuto espaço. Leandro vai e volta até encaixar a Kombi com perfeição, sem atrapalhar o carro da frente nem as motos atrás. Sua Kombilândia está estacionada. Ele atravessa para, na lanchonete da frente, contar sobre seus 38 anos, 11 deles vendendo pastéis no trecho da rua entre a Avenida Itamar Franco e a Rua São Mateus.
“Eu trabalhava como operador cinematográfico, passando filmes no Alameda. O cinema decretou falência e fechou. Hoje tem outro dono. Eles iam mudar para uma praça em Belém do Pará, mas eu estava noivo na época. Lá foi o início de tudo. Minha esposa era bilheteira. Uns 90% dos meus amigos são de lá. A gente ficava de meio-dia a 1h da manhã. Era muito tempo. Na época eu tinha 18 anos e fiquei 12 anos trabalhando lá. Saí aos prantos”, narra o homem, que passou a integrar a equipe do local ainda como guarda mirim. “Eu ligava o filme e ficava esperando acabar. Quando comecei, ainda eram rolos. Depois que eles passavam a gente tinha que rebobinar para passar de novo. Os rolos eram montados uns nos outros. É uma profissão que hoje não existe mais. Tenho alguns amigos que ainda trabalham no ramo, mas não são operadores mais, porque tudo é digital. Eu viajava muito. Vivi a época do Harry Potter e ‘O senhor dos anéis’.”
Numa Rural adaptada, o sogro vendia pastéis no Bairro Alto dos Passos. E garantiu a Leandro que o negócio era bom. “Eu tinha um carro, vendi e modificamos a Kombi”, lembra ele, que levou o veículo a um serralheiro especializado em portas e janelas. “Se não desse certo, eu iria perder o carro. Vimos uns vídeos da internet e serramos a Kombi ao meio, fizemos uma emenda na altura que queríamos que ela ficasse e soldamos o teto de novo”, conta o homem, que adora o salgado, principalmente os pastéis de carne com queijo e frango com queijo. O carro usado custou-lhe R$ 9 mil, e foram gastos mais R$ 7 mil na adaptação. “Aqui é um lugar no céu. Muita coisa vivi, muita gente me ajudou. Quando eu não tinha luz, esticavam luz para a Kombi. Muitas lojas vi abrir, também ajudei em enchentes. Até hoje tem um senhor que costumo buscar almoço para ele. Quando adoeci me ligavam, foram me visitar em casa. Fiz muitos amigos aqui.”
Não era fim
Há quatro anos, Leandro sentiu um relevo no céu da boca. Achava que fosse um dente. Foi ao dentista, que recusou a suspeita e solicitou uma biópsia. “Lembro que peguei o resultado numa sexta-feira. A esposa de um amigo meu, cliente do pastel, sabia que eu pegaria o resultado e apareceu para saber. Ela perguntou o que deu. E eu falei: ‘Carcinoma adenoide cístico’. Ela perguntou se eu tinha ido ao médico. Eu falei: ‘Fui não, não tem nada escrito de câncer. Segunda-feira eu vou’. Ela me disse que eu deveria ter ido. Ela sabia o que significava. Aquilo me preocupou e eu fui consultar o Dr. Google. Foi aí que desabei. O final de semana ficou grande. Mas eu não podia desistir. Tinha um filho de meses de vida, nem 1 ano ainda. Eu tinha que lutar. Saí de moto achando que ia morrer quando vi um menininho na cadeira de rodas e sem as pernas. Pensei: ‘Ele não tem chance de andar e eu ainda tenho chance de viver. Quem falou que eu vou morrer?’ Comecei o tratamento, então. Mas passei por um médico no HPS que me desenganou. Ele falou que 90% dos casos tomam o crânio, chega ao cérebro e mata. Fui consultar outros médicos, que me falaram outras coisas e fui tentando”, relata o marido de Karine, com quem está junto há uma década e que lhe deu Pedro, hoje com 4 anos, e a pequena Lívia, de pouco mais de 1 ano.
Era começo
Fez tudo o que pôde. “Fui a Matias Barbosa, fazer uma quimioterapia medicinal. Fiz um tratamento espiritual em Sabará, que o Gianecchini também fez. Fiz tudo o que se possa imaginar. Em Juiz de Fora, fiz oito sessões de quimioterapia e 35 de radioterapia. Fiquei careca, perdi um pouco da visão desse olho (esquerdo) e um pouco da audição. Passei por três cirurgias. O médico tirava um pedaço do meu crânio e levava para a análise, e eles falavam se já tinha acabado ou não. Era como se fosse uma fatia de bolo. Na última cirurgia, tirou muito, até aqui na frente dos dentes. Saí de lá me alimentando por sonda. Foi uma parte bem difícil”, lembra Leandro. “Fiquei entubado, 15 dias em coma. Lembro de acordar com uma sensação horrorosa, um tubo na boca e sem conseguir me mexer. Nada podia passar pela boca. Quando consegui beber água, foi um presente. Há pouco tempo, coloquei a prótese, porque não tinha os dentes”, acrescenta. “O câncer me tornou uma pessoa muito melhor, olho melhor para os outros, ajudo mais as pessoas, coisas que eu não fazia”, reconhece ele, que a cada exame de controle comemora uma nova vitória. Passou a se preocupar com as pessoas e a se ligar mais à família. “Não consigo viver sem a minha família e sem meus amigos”, diz o homem nascido no Grajaú, criado no Parque Independência e, hoje, morador do Santa Luzia.
E sempre recomeços
Durante o tratamento, Leandro ficou afastado do trabalho. A esposa e uma prima tocaram o negócio. Por cinco meses, chegaram a perder o alvará. “A sorte é que já tínhamos um fluxo legal de entregas. As pessoas ligavam, ela fazia em casa e um motoboy entregava”, recorda-se ele, que retomou o documento renovado ano a ano. “É uma briga contínua, uma trilha cheia de pedras. Resta saber se, quando tropeçar e cair, vai ficar caído ou vai levantar. É muito difícil montar o próprio negócio”, afirma ele, que chega no ponto às 18h30 com sua Kombilândia. A esposa fica em casa, cuidando dos filhos e atendendo os clientes por telefone ou por aplicativo. Quando o pedido é feito, ela passa para o marido, que fecha o pastel, frita e despacha. Na Kombi, atualmente, trabalham a sogra de Leandro e a mãe. O pai, um relojoeiro, morreu quando ele tinha 22. Durante as manhãs, Leandro ainda trabalha como motoboy para um açougue de São Mateus e faz as compras necessárias. Leva o filho para a escola, faz a massa – cerca de 10 quilos – busca o menino e já sai com a Kombi. A esposa prepara os recheios. Há pouco mais de um ano, sedentário e já com uns quilos a mais, apaixonou-se por pedalar. “Nesse final de semana que passou fui até Aparecida do Norte de bicicleta. Foram 70 pessoas. Pedalamos 130km em um dia, 120km no outro e 70km no último. Sou muito devoto. A fé é uma coisa que não se explica”, diz ele, que foi agradecer. Nada a pedir. “Hoje não tenho sonhos, só o desejo de que minha família tenha saúde”, diz, sorrindo.