Doutora Plural, as vozes de Adenilde Petrina
Intelectual e militante do Bairro Santa Cândida é reconhecida com título de doutora Honoris Causa
Ao lado da mesa da copa há um quadro, um retrato pintado, com seis pessoas da mesma família Bispo. “Ali em cima, está meu pai, Luiz, e minha mãe, Lindaura. Do lado de cá, minha irmã Clareth, a que saiu no portão quando você chegava. Embaixo, está a outra, Nívea, que mora no Santa Terezinha. Do lado dela, o Nonô, e, mais embaixo, a irmã que mora fora. A Reinalda não está aqui porque não tinha nascido”, aponta Adenilde Petrina Bispo. E a senhora, onde está? Ela ri. Havia me esquecido de apontar a si mesma no retrato. “Eu sou aquela embaixo da minha mãe, a mais velha”, repara ela, acostumada a olhar, permanentemente, para o outro. Habituada a se tratar no plural. Adenilde é nós.
“Ninguém faz nada sozinho”, ensina a senhora de 64 anos, mais de quatro décadas deles vividos na mesma casa, no Bairro Santa Cândida, ao lado dos que estão retratados no quadro de moldura dourada, todos envolvidos na tarefa de carregar dia a dia baldes e mais baldes de água da mina à casa. “A gente não aguentava carregar água nas costas, descer na mina, que ficava ali embaixo. O bairro inteiro buscava água lá, era muita gente, e, de vez em quando, espocava briga. Aqui em casa, a gente decidiu só ir buscar depois das 23h. A água era usada para cozinhar, beber, tomar banho e lavar roupa. A da chuva servia para fazer faxina”, recorda-se ela, natural de Ouro Preto. “Meu pai trabalhava em estrada de rodagem e, conforme a estrada ia avançando, ia acompanhando, até chegar a Juiz de Fora, onde se aposentou.”
Na região, o patriarca Luiz trabalhou por alguns anos, até se aposentar e, com o dinheiro, sair do aluguel, comprando uma casa no Candinha. “Aqui não tinha nada, água, luz, esgoto, calçamento. Não tinha ônibus, e era preciso ir para o Vitorino Braga ou descer até o Hospital Aragão para pegar condução. A dona Aparecida do seu Sabino começou a organizar um movimento para pedir melhorias para o nosso bairro. E eu comecei a participar, com uns 18. Não parei”, recorda-se ela, cujo punho cerrado é agora reconhecido pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) com o título de Doutora Honoris Causa, inédito para uma mulher negra e pobre, fruto de uma periferia invisível para as políticas públicas, mas próspera de uma cultura que a violência propagada pela grande mídia insiste em silenciar. “Com o pessoal do hip-hop, aprendi que a sabedoria das ruas é uma grande faculdade. Se eu tivesse que escolher entre fazer um doutorado na universidade e aprender na rua, com certeza escolheria as ruas, porque é muito mais a nossa cara. Existem vários saberes numa comunidade que muitas vezes não são reconhecidos pelo ensino formal, mas que fortalece a gente. Aprendi a história da África ouvindo rap”, afirma uma das mais potentes vozes da periferia juiz-forana, a Doutora Adenilde.
Sobre acreditar na palavra
A mãe Lindaura acreditava que mulher precisava ir até a quarta série só. “Para saber ler e fazer as receitas nos serviços de doméstica”, conta Adenilde, que insistiu e pediu para que um padre convencesse a mãe. “Agora, por sua causa, todos vão ter que estudar”, bradou, persuadida, Lindaura. “Ia muito na casa das irmãs do (Mosteiro) Santa Cruz, e a irmã Maria Rosa me encaminhou para o Colégio Santa Catarina com o objetivo de eu ser freira. Eu estudava e, depois das aulas, limpava a escola. Com isso, ficava livre de pagar as mensalidades, que eram muito caras. Tudo era difícil, até comprar os materiais, e minhas colegas me ajudavam. Quando me formei, fiquei um mês num convento de Petrópolis, mas não gostei. Era muito chique, não conseguia nem comer direito, porque, quando ia tomar o café da manhã, lembrava-me dos meus irmãos passando o maior perrengue. Lá a mesa era superfarta, e meu quarto era top de linha. Não era justo desfrutar daquilo com a minha família e minhas colegas vivendo outra realidade. Queria ser, então, uma peregrina. Voltei e mandei ver nos trabalhos comunitários”, lembra ela, que se graduou em filosofia pela UFJF e logo se tornou professora de história. “Eu já trabalhava com educação popular, dando aula para analfabetos pelo método Paulo Freire. Já fazíamos aquelas rodas de conversa debaixo de árvores, discutindo a conjuntura nacional”, completa a então integrante da Ação Católica Operária que ajudou a montar o Grupo Nós Todos, experiência de Teatro do Oprimido no Santa Cândida, nos anos 1980, apresentando montagens pelo bairro para despertar discussões. “Conseguimos uma linha de ônibus só por conta de uma peça.” Fortalecida, a experiência militante e cultural possibilitou que Adenilde e seus companheiros abrissem, na casa dela, a Rádio Comunitária Mega FM, voz das margens extinta em 2005 pelo cruel poder das grandes concessões públicas de comunicação. “Nossa rádio foi um espetáculo. Foram dez anos de luta e organização, criando uma pertença nesses jovens. De vez em quando encontramos alguns. Outro dia vi o Marcelinho, que me disse: ‘A Mega tem que voltar! Antes eu era o Marcelinho da Mega e hoje não sou ninguém!’. O pessoal tinha orgulho da rádio”, alegra-se ela, que, integrante da Posse de Cultura Hip-Hop Zumbi dos Palmares, formou o Coletivo Vozes da Rua, focado no estudo sociocultural e na prática de expressões do hip-hop.
Sobre ouvir e entender estrelas
“Quando a grande mídia começou a falar da violência e dos perigos de Santa Cândida, despertou um sentimento de baixa autoestima muito grande na comunidade. O pessoal passou a querer ir embora. Fomos estudar o Frantz Fanon para entender as raízes da violência. A mídia faz estatística, a polícia faz estatística, a academia faz estatística. E nas estatísticas não há nomes, famílias, nada. No ‘Os condenados da terra’, a gente entende o que acontece nas periferias das cidades, que funcionam como a (escritora) Carolina Maria de Jesus diz, são os quartos de despejo das cidades. Tudo o que é de ruim é jogado nas costas das periferias. Nosso estudo é para que encontremos estratégias de trabalho e mudança. O sistema é violento, a história do Brasil é violenta, a desigualdade social é violenta, mas a maioria das pessoas não enxerga a violência desses processos, o quanto somos massacrados. O Zói escreveu um rap que chama ‘Revoltado na esquina, revoltado na rima’. A revolta vem porque aqui não tem uma praça, não tem projetos de políticas públicas, o bairro é desprovido de recursos elementares. Mas aqui tem muita gente bacana, tem o Felipe Stain, um artista plástico e grafiteiro; tem o Zói, que é rapper; tem os meninos do Afrorudy, de break; tem o Flow Killa, de break também. Tem luz no fim do túnel. A arte é uma forma de libertação. Aqui tem artista e trabalhador, gente que lê, que estuda, que pensa, que admira estrela, tem até quem sabe que a estrela tem barulho”, diz, referindo-se ao poema “Via Láctea”, de Olavo Bilac: “Só quem ama pode ter ouvido/capaz de ouvir e de entender estrelas”.
Sobre ter um lugar
“Todos os dias”, diz Adenilde, “a gente tem que mostrar quem é, o que pode fazer. Por isso fico mais por aqui, pela periferia, onde posso andar da forma que sou, de chinelos, com liberdade.” A periferia, defende, é onde se sente segura. “É onde a gente se sente bem. Aqui é o nosso lugar”, ressalta, sempre no plural, a mulher que se manteve firme mesmo diante de um câncer de mama, que a levou à aposentadoria por invalidez em 2013, como professora nos supletivos da rede municipal de ensino, onde permaneceu por 28 anos. “A Adenilde é uma escola”, define Ana Cecília Francisquini, diretora da Escola Municipal do Santa Cândida, ao lado do ex-aluno Yuri Souza, de 15 anos, cria da casa de Adê, como a mestra é reconhecida nas ruas. “Aqui me sinto bastante à vontade. Venho aqui direto. Esses dias trouxe um livro para ela, sobre arquitetura, escultura e pintura dos séculos passados. Ela tinha se interessado e, como eu não tenho tempo para ler agora, trouxe para emprestar a ela”, diz o jovem, testemunha da luta de Adenilde como o Grupo Flores Raras, liderado pelas professoras Daniela Auad e Cláudia Lahni, que fez a sugestão do título à UFJF. “Fiquei bastante perplexa, fora de foco (com o título). A gente caminha junto na comunidade. Fazemos porque gostamos, amamos, temos a utopia, um sonho de um mundo melhor. Fico constrangida porque tenho a consciência plena de que, se não fosse a escola, os meninos do coletivo, a galera do Santa Cândida, não haveria sentido para os movimentos sociais nos quais milito. É uma caminhada para uma sociedade mais fraterna, mais justa, mais solidária, mais igual. E lembro muito daquela poesia ‘Perguntas de um trabalhador que lê’, do Bertolt Brecht, que fala que o Alexandre, o Grande, não ganhou guerra sozinho, que a Invencível Armada não venceu nada sozinha, que Tebas foi construída por operários. Tudo acontece de modo coletivo”, reforça. “A gente sabe que o mundo é muito maior, que somos uma gota no oceano. É um título para todos nós. Todos somos Honoris Causa, porque na nossa matilha não tem cão alfa.”