As lições da pedagoga Cátia Rosa
Cátia foi aluna, faxineira, secretária, professora e, hoje, é diretora da escola que também se superou ao reabrir vagas quando seu destino era fechar as portas
“Dedico este trabalho a todas as crianças negras que são privadas das referências necessárias para uma identificação positiva e permanente com sua raça e a todos os educadores que têm como meta formar pessoas críticas e reflexivas, que respeitem e explorem a riqueza das diferenças, recusando-se a transformá-las em desigualdades.”
Cátia Luciana Rosa Marcelo, na dedicatória do trabalho de conclusão do curso de pedagogia, intitulado “Educar para a igualdade étnico-racial”, aponta para o outro e também para si. Fala e ouve, recordando a criança que precisou crescer para descobrir que para renascer basta seguir em frente.
Capacitada, a profissional
Há pouco mais de um ano, Cátia, de 49 anos, adentrou uma pequena sala na Escola Estadual Teodorico Ribeiro de Assis para assinar como diretora. Voltou para a secretaria. Foi para o refeitório. Visitou as salas. A inquietude era sintoma do desconforto.”Cátia, você se dedica tanto a essa escola!”, diziam uns. “Doou a vida toda!”, ressaltavam outros. “Tem que ser você a pessoa para lutar por essa escola!”, defendiam todos. “Deus não escolhe os capacitados, mas capacita os escolhidos”, acreditou a ministra da eucaristia na Paróquia de São Judas Tadeu. “A escola estava com o propósito de ir fechando gradativamente, porque o estado não tem obrigações com os anos iniciais. Quando entrei, então, fomos realizando projetos, e, aos poucos, estamos reabrindo as turminhas, crescendo novamente”, emociona-se a mesma Cátia que estudou, limpou, cozinhou, secretariou, ensinou e hoje dirige a pequena instituição de ensino com cinco turmas em período integral e oito regulares no Bairro Furtado de Menezes. “Nasci e fui criada na comunidade, pertinho da escola. Estou aqui há 20 anos. Minha vida é essa escola.”
Amável, a filha
Numa casa de escassez, Cátia precisou aprender logo a somar. “Abandonei meus estudos muito cedo, porque meus pais viam mais vantagem em eu abandonar os estudos e ir trabalhar. Fiquei 20 anos sem estudar. Finalizei o ensino fundamental e nem cheguei ao ensino médio”, recorda-se a filha do Rodrigues, auxiliar de serviços gerais já falecido, e da Lucinha, copeira aposentada. Aos 18, já casada com César, balconista no comércio, e aos 20 mãe da Karen, hoje professora, Cátia trabalhou em malharias, fábricas de jeans, cortou e costurou até se tornar faxineira na escola próxima de sua casa. “Fiquei nos serviços gerais durante dez anos. E sempre fiquei encantada com a profissão de professora. Varria as salas de aula e pensava: ‘Meu Deus! Tomara que a minha filha, um dia, se torne professora!’. Sonhava e nunca imaginava que esse sonho seria para mim também. Só desejava para a minha filha”, diz. Um ano, contudo, quando ainda não era funcionária efetiva na rede estadual, não conseguiu renovar seu contrato. “Na época da designação, quem tinha mais tempo de serviço passava à frente, e uma senhora assumiu essa vaga. Entrei em desespero. Ia do Furtado para a superintendência, no Mariano Procópio, a pé, porque não tinha o dinheiro para a passagem. Corri atrás, mas não consegui contrato em escola nenhuma. Foi quando surgiu uma oportunidade na educação para jovens e adultos na Vila Olavo Costa.”
Teimosa, a aluna
Todos os dias Cátia caminhava até o Curumim do bairro vizinho para estudar das 18h30 às 22h30, como acontecia com outros 400 alunos em outros dez pontos pela cidade. “No dia da nossa formatura do ensino médio, no CES (que oferecia o projeto junto da ONG Vivo Rio), com auditório lotado, a faculdade prometeu dez bolsas integrais para os dez primeiros colocados. Meu marido falou: ‘Você é uma delas’. Eu não acreditava. Mas não só eu consegui como também outras quatro da comunidade”, lembra a então aluna de pedagogia. “Íamos a pé (para a faculdade, no prédio do Colégio Academia), todos os dias, uma auxiliando a outra, cada dia uma levava o lanche. Foi uma comoção tão grande da comunidade que a nossa paróquia nos convidava para falar e servir de exemplo para os jovens, mostrando que existem outros caminhos, que não o das drogas e da violência”, conta Cátia, que, enquanto se graduava, assumiu a secretaria da escola. “A faculdade não foi fácil. Sofremos muita pressão por sermos negras e bolsistas. Deu vontade de desistir muitas vezes. Mas uma força maior nos segurou lá. Foi um momento único, maravilhoso, emocionante. Foi uma vitória muito grande”, diz com o brilho que os olhos tomam quando guardam lágrimas. “No começo, sofremos muito preconceito. Estudávamos muito para mostrar que estávamos ali não por caridade, mas porque merecíamos. Teve uma prova, de um livro chamado ‘Porque uns e não outros’ – que tem muito a ver com a nossa realidade, que fala porque alguns jovens de favela, de comunidade, vão para a faculdade e outros vão para o mundo do tráfico -, que fechamos, nós cinco. Escutávamos alguns alunos da turma questionando sobre como nós fechamos a prova se nem dinheiro para comprar o livro nós tínhamos. Outra vez, a professora quis misturar os grupos de trabalho, e umas meninas se levantaram e disseram que se recusavam a participar de grupos com nós cinco. A professora ficou sem reação. Nos sentimos humilhadas, só sabíamos chorar. Descíamos o morro da faculdade chorando. Minha vontade era sair e não voltar nunca mais. Achava que aquele lugar não me pertencia. O que estou fazendo aqui?”
Insistente, a pedagoga
Primeira da família a obter um diploma, Cátia apresentou sua monografia para os três membros da banca e também para outras turmas do curso de pedagogia. Mais que um tratado acadêmico, o trabalho era o retrato de uma custosa vitória. Naquele tempo, a hoje especialista em gestão educacional, supervisão e orientação já havia conseguido efetivar-se no estado como auxiliar de serviços gerais. “Todo mundo questionava se eu iria abandonar a estabilidade. Mas eu precisava. Tive a oportunidade de fazer uma graduação e precisava ter essa experiência (dar aulas). Então, pedi exoneração do meu cargo e tive a oportunidade de conseguir uma designação para dar aula na mesma escola. Os alunos que já estavam acostumados com a minha presença na escola me acolheram de braços abertos”, pontua a pedagoga. “Fazemos tudo para transformar a realidade das nossas crianças. Tudo aqui é por eles. Eles já são tão sofridos, a realidade é muito triste, de muita violência. O que posso fazer por eles, eu faço, para criar momentos felizes para cada um deles. Costumo dizer que eles são a minha vida. E o retorno é imediato. É cada abraço! Cada sorriso! Cada olhar! Não tem dinheiro que pague! Agradeço dia e noite por ter sido colocada nesse lugar”, sorri a mãe da Karen, professora na mesma Teodorico Ribeiro de Assis. “Hoje, as serventes de outras escolas retomaram os estudos e me ligam para contar.”
Aferrada, a mulher
Quando o relógio aponta 6h30, Cátia costuma já estar na escola, de onde sai por volta das 17h. Os pequenos precisam do que o sorriso dela está pronto para oferecer. “Minha filosofia é o amor. Eles precisam disso. Se eu tratar com ignorância não vou segurá-los aqui dentro, porque eles já têm isso lá fora. É importante fazer a diferença. Eles precisam de abraço, conversa, colo. Aqui trabalhamos pela paz e não admitimos violência. Temos um retorno maravilhoso”, conta ela, lamentando, ainda, as outras tantas necessidades. “Alimentação nunca faltou, mas temos que medir para não faltar. Para muitos alunos, a única alimentação que eles têm é a daqui. Às vezes, chegam de manhã reclamando de dor de cabeça. Ah meu filho, que horas você comeu? Foi só aqui na escola, tia, ontem. Aí quando dá alguma coisa para ele comer, logo ele já está pulando, brincando”, comenta ela, orgulhosa do projeto da horta vertical que a escola iniciou e, agora, serve à comunidade. É preciso, a todo momento, pensar no que está no entorno para, só assim, construir a educação que liberta, que a libertou e pode libertar muitos outros. “Preciso mostrar para eles que existem outros caminhos. Através dos estudos, é possível modificar a realidade da família. É preciso internalizar isso. Em cartinhas, eles reproduzem isso, e é muito gratificante.”