O ballet de sorriso aberto de Miraldina Santos
Dançarina profissional, Miraldina nasceu em Angola e há cinco anos escolheu Juiz de Fora para estudar educação física. Prestes a regressar, conta sobre o muito que aprendeu e o tanto que ensinou
Dançar o corpo é agitar todos os membros sob o signo de uma mesma música. É colocar o corpo em festa. “Minhas apresentações faço como uma celebração. É sempre uma festa a minha dança. Os movimentos muito característicos das danças africanas exigem muito deslocamento do quadril, e em muitos momentos a gente dança o corpo inteiro. O pé fazendo uma coisa, o quadril fazendo outra, o tronco de um jeito e o braço de outro. Outra característica forte da nossa dança é a alegria”, diz, sorrindo, a jovem angolana Miraldina Alice Santos, de 25 anos, cinco deles vividos em Juiz de Fora. Um ano antes, em 9 de maio de 2013, ela desembarcou no Rio de Janeiro trazendo na mala o sonho de cursar educação física e no corpo a dança com a qual nasceu. A mãe conta que ela mal andava e já dançava. No quinto ano do ensino fundamental envolveu-se na dança como atividade extracurricular. A professora identificou o talento e começou a dar dicas e orientações a Miraldina. Anos mais tarde, aos 16, quando brincava no pátio da escola, um grupo conhecido no país, que visitava o local, convidou a menina para ir a um ensaio. Ela foi e passou, então, a integrar a companhia, na qual ficou por quase três anos.
No fim do ensino médio, a menina começou a trabalhar profissionalmente com a dança, no grupo Angola News Generation. “A gente era patrocinado por um espaço, tinha gerência e tínhamos que cumprir vários contratos. Era tudo muito organizado. Foi uma das melhores experiências que tive com dança, inclusive em termos de remuneração”, lembra. Miraldina entrou para uma faculdade de gestão, enquanto aguardava as repostas dos intercâmbios para os quais se inscreveu, no Japão e no Brasil. Também ajudava a mãe, contadora autônoma, e fazia as tarefas domésticas. Sempre bailando. “A dança, apesar de ser muito presente em nossa cultura, não era algo que se valorizasse ou buscasse trazer em evidência. E isso se justificava pelo processo que estávamos vivendo: o país estava em reconstrução e não era prioridade do governo valorizar a cultura, e, em especial, as manifestações populares. Mesmo assim a cultura sempre existiu, porque é algo bem enraizado no povo angolano, principalmente a dança, e tudo o que é relacionado ao corpo”, conta.
Quando pisou pela primeira vez em terras brasileiras, Miraldina já sabia dançar o samba e o funk. Mais tarde aprendeu samba de gafieira e forró. Muito ensinou, no entanto. Influenciada pelo grupo Kilandukilu, de dança tradicional, pela cantora Pérola, que transita entre a tradição e o popular, e pelo cantor Anselmo Ralph, gosta bastante do tradicional semba, que não é familiar ao ritmo brasileiro apenas pelo nome, e também do afrohouse, house music com batidas de percussão. Do interior de sua Angola, trouxe também a sungura e o kabetula. “Temos costumes lá de dar festas de família, que se chamam sentada familiar. São tipo os churrascos de vocês, no final da tarde de sábado. Temos sempre DJs nas festas, porque gostamos de dançar. Até fazemos competições de dança na festa. E em casa, nos preparativos, montando, ouvimos as músicas e paramos para dançar”, conta. Uma coisa muito incrível do povo angolano, diz ela, é a alegria. “Você pode chegar em lugares nos quais vai ter vontade de chorar, mas não vai conseguir, porque vai encontrar as pessoas alegres. Elas podem estar passando por situações difíceis, mas estarão alegres. Não dá para explicar naturalmente, é algo divino.”
A fé em outros tempos nos une
O ano em que Miraldina saiu de sua casa para estudar em outro país começou com o vermelho do sangue de 14 fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus, na Cidadela Desportiva, em Luanda, mortos na madrugada do réveillon. Marcado por protestos e escândalos de corrupção no Governo, o ano também reservou ao povo esperanças de que o caos anunciava outros tempos. Para Miraldina os dias realmente seriam outros. Há seis anos ela candidatou-se num programa fruto de um acordo diplomático entre Brasil e Angola. “Existe uma nota de corte. Se estiver dentro do padrão, é só enviar toda a documentação para a embaixada, que manda para o MEC, que, por sua vez, analisa e seleciona. Quando vim para cá só tinha ouvido falar em Rio e São Paulo, e minha irmã (que hoje cursa design de interiores no CES-JF) já tinha vindo para Juiz de Fora. Fui selecionada para Uberaba, pedi reavaliação e, como minha segunda opção era estudar no Rio de Janeiro, eles me enviaram para a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Estudei lá por um ano e meio e depois pedi a transferência para a UFJF. Desde 2014, moro em Juiz de Fora, fazendo o mesmo curso: educação física”, narra a jovem, que sempre gostou de dança, esportes e da área de saúde. “No meu ensino médio fui preparada para cursar medicina, mas no último ano de escola descobri que gostava de cuidar da saúde das pessoas, mas não como médica”, conta ela, que então conheceu uma amiga da irmã e perguntou-lhe sobre a área do educador físico. “Eu me apaixonei pelo curso. Não preciso deixar nada do que já fazia, como a dança e a capoeira. Agrego tudo ao meu trabalho”, afirma. Miraldina também se envolveu com a cinesiologia, área que analisa o movimento. “Hoje trabalho como toda personal e também atuo com reabilitação de lesões. A coisa que mais me move é melhorar a qualidade de vida das pessoas”, pontua. Em Angola, espera trabalhar com formação de bailarinos. Antes disso, porém, planeja entrar num conservatório de artes nos Estados Unidos, por dois anos. “Em 2022 pretendo me instalar em Angola e começar um trabalho voltado para a educação física e arte, principalmente a dança. Almejo ter uma fundação de arte e cultura”, anuncia ela, já formada no bacharelado, estudando para se graduar também na licenciatura. Enquanto isso, atua dando aulas de afrohouse num estúdio de dança, workshops e aulões em diferentes espaços.
A disposição em olhar além nos une
Quando regressar à sua Angola, Miraldina encontrará outro país. O presidente José Eduardo dos Santos, que permaneceu no cargo por 38 anos, deu lugar a um novo político, João Lourenço, o JLo, do mesmo Movimento Popular de Libertação de Angola. O momento também é outro nos costumes, após, este ano, a homossexualidade ser descriminalizada e a discriminação, proibida numa votação que registrou 155 votos a favor dos avanços sociais, contra um voto conservador e sete abstenções. Na verdade, Angola é outra desde sempre, garante Miraldina, ao menos para os olhos brasileiros. “Do mesmo jeito que aqui as pessoas não têm muita informação sobre o continente africano e ainda mais sobre Angola, o mesmo existe lá. Aqui a mídia às vezes mostra assim a África: pega uma imagem de alguma cidadezinha na Somália e diz que esse é o continente. Isso não representa a verdade. Em Angola temos a Record e a Globo Internacional, que fazem duas imagens do Brasil para o angolano que nunca veio aqui: é um lugar muito violento e com muita prostituição. Meus tios falavam com a minha mãe, como ela era louca de me deixar vir para cá. Meus amigos achavam que eu andava me escondendo de balas. Como sempre fui inconformada de as pessoas acharem coisas incorretas sobre o meu país, pesquisei e descobri que o Brasil não é do jeito que mostram. Gosto muito da experiência que estou vivendo aqui, encontrei muitas pessoas legais, criei família. Aqui é fácil a gente se sentir em casa”, emociona-se a jovem, citando o fascínio pela liberdade, especialmente a existente em sala de aula, que permite o debate honesto com o professor. Em Angola, conta, qualquer debate público configura uma afronta para com o mestre. Em seu país de origem, ainda, o estudante universitário é tratado como um referencial social, o que demanda ser exemplo para os que não tiveram a mesma oportunidade, por isso o código de vestimentas para as universidades. “É um país bem mais conservador que o Brasil. Quando cheguei aqui, falei: ‘Uau!’. No início fiquei escandalizada, mas não só pela vestimenta, mas pelo tanto que a comunidade universitária bebe”, ri, dizendo que o governo angolano sempre utilizou a bebida como estratégia para “dopar” o povo. “Não bebo nada industrializado, só água e sucos naturais de frutas”, pontua ela, evangélica por formação, mas sem ser praticante de uma religião. “Na religião existe muita busca do homem por um sentido. Na minha vida quero, simplesmente, saber do que Deus fez e faz por mim.”
A vida, em sua essência, nos une
Miraldina nasceu quatro anos depois da retirada das forças estrangeiras na guerra civil angolana. E um ano após a transição para um sistema político multipartidário. Mas em meio à guerra civil que tanto marcou o país, numa Huambo localizada no planalto, com mais de um milhão de habitantes. Em 1999, após a separação dos pais, mudou-se para Luanda, a capital do país. “Na época minha mãe era contadora da Cruz Vermelha e surgiu a oportunidade de trabalhar em Luanda. Seria uma vida diferente, com muito mais oportunidades. Ela se mudou no meio do ano, ficamos sob a tutela de alguns parentes, e no fim do ano fomos viver com ela. Morávamos eu, meus irmãos (quatro) e ela. Depois ela trouxe minha avó para morar com a gente. Já passou muita gente na minha casa. Minha mãe é daquelas pessoas que têm o coração gigante. Muita gente que precisava estudar, minha mãe pegava e ajudava”, conta Miraldina, que encontrou muitas semelhanças entre a vida em Angola e no Brasil. “A vida em Luanda é muito mais parecida com a do Rio de Janeiro, por ser capital, muito movimentada, e por ser litorânea e receber muito turista. Lá tem um custo de vida muito alto. Existem as desigualdades, que a gente vê aqui também”, enumera ela, pontuando também a diferença que cria um abismo entre os dois países: “Somos bem recentes. De independência são só 43 anos. Ainda tivemos a guerra civil, que foi até a década de 1990. E em 2000 foi assinado o acordo de paz. Coincidentemente, hoje (4 de abril) lá é feriado, é o dia da paz”. O português em sua norma padrão que Miraldina diz revela a alfabetização em português. Mesmo tendo nascido em Huambo, onde o dialeto umbundu é bastante popular, não chegou a aprender as línguas nacionais. Sua mãe e um de seus irmãos são fluentes no umbundu. “Entendo muitas coisas, e algumas falo”, diz ela, num português sem sotaque. Logo que chegou, as pessoas não entendiam quando ela falava. “Tenho muita facilidade com línguas, então, hoje brinco que tenho dois chips, um de português BR e outro de português AO. Quando estou em casa ou ligo para a minha mãe, falo como se estivesse em Angola. Se encontrar um angolano, vai ter uma diferença da forma como vou falar com ele”, assegura, rindo, a jovem, que também acostumou-se a ver como pauta o que sequer é assunto em sua terra natal, o racismo. “No tempo em que estive aqui, se alguém foi racista comigo, nem percebi. É uma coisa para a qual, na verdade, nunca tinha me despertado. Cresci um país negro, e essa é uma questão com a qual não tínhamos que se preocupar”, comenta ela, dizendo que a mãe, em sua primeira visita às filhas, viveu um episódio de racismo numa clínica. A irmã, por sua vez, também não tem relatos. “Percebi que a distinção aqui é muito grande, de brancos, pretos, pardos. Em Angola é muito raro se referir a alguém pela característica de cor de pele. Quando olho para alguém não penso em qual cor ela tem”, ensina. “Estou interessada na pessoa que se mostra. Eu me acostumei a olhar para as pessoas conhecendo quem elas são. E a questão física é um último recurso para falar quem é quem.”