Natálio Luz: nomeado pela arte
Ator do radioteatro, diretor e dramaturgo, o italiano Natale Chianello, naturalizado brasileiro como Natálio Luz, fala do convívio com o Parkinson, da carreira e do país que escolheu para si
Mesmo no silêncio absoluto é possível manter-se gigante. A arte do ator ensina a verborragia presente em palavra nenhuma. Natale Chianello aprendeu que o passado tem eco. A memória falha. O corpo fraqueja. O ânimo é colocado à prova. Mais de 20 comprimidos diários. Mas não ameaça a estrada. “Sou muito feliz”, afirma. Envelhecer é difícil? “Para mim, não”, confirma. “É muito difícil passar uma semana razoável, com minha voz natural. Não estou beeeem! Mas estou bem. Tenho Parkinson. Você não imagina o que aguento! Tenho essa deficiência toda, mas não estou triste. Convivo com a doença há mais de dez anos. Não sabia que tinha. Agora ela vai me enchendo de outras necessidades. ‘Me enchendo de outras necessidades!’. Bonito isso, não?!”.
Aos 86 anos, o homem de voz grave passa seus dias na companhia da esposa Lúcia, brasileira descendente de alemães e italianos. Em 2018, o casal completa 60 anos de casado. Vivendo junto da família da filha, Natale, pai de três e avô de sete, tem à sua volta muitas de suas pinturas – “Hoje começo e não acabo”, lamenta – e as duas calopsitas do genro – Crioulo e Kiko -, que cantam o hino do Fluminense perfeitamente. Ouve rádio? “Muito raramente. É muito diferente hoje, mas tão bom quanto o outro. A televisão também evoluiu muito”, diz. Assiste a novela? “Gosto, mas acabo dormindo”, conta, aos risos.
Artista devotado, tornou-se Natálio para a cena e viu seu último texto, “Uma chance à esperança”, chegar ao palco há mais de dez anos, tempo em que também fez suas últimas interpretações. Há algum tempo, ir ao teatro tornou-se exercício mais complexo. “Era um dos meus prazeres, porque prazer a gente tem com muitas coisas. E Juiz de Fora é um lugar de povo prazeroso”, elogia, resignado, o homem que não apenas redigiu importantes trechos da história local, como também se fez testemunha. Então funcionário de uma recém-criada Funalfa, onde permaneceu durante o governo de Mello Reis, viu o Teatro Paschoal Carlos Magno passar de promessa a canteiro de obras. Adoraria ver o espaço finalizado. “Era um belíssimo projeto”, atesta o autor de “Mas existe cascavel em Juiz de Fora?”, dramaturgia crítica às disputas políticas locais, certo de que o lugar da arte permanece, passado o tempo, inalterado: “Não me aposentei da vida artística. Não temos os devidos lugares para nossos grupos. Nós vivíamos marginais.”
Está lá fora, o inspetor!
A vida, conta Natálio, exige profundidade. Estudar, portanto, sempre representou gesto natural. “A perfeição não existe”, filosofa. “O que existe é um estado de placidez que ultrapassa as barreiras naturais da vida. Não posso me queixar da vida. Desde que nasci me sinto fazendo arte. A primeira grana que conquistei com isso foi com um desenho que a professora viu e colocou nos Correios para eu participar de um concurso”, recorda-se ele, que na década de 1950 trabalhava numa empresa responsável pela fabricação de listas telefônicas, fazendo uma listagem prévia dos endereços e telefones. Logo em frente estava a famosa Rádio Mayrink Veiga, onde se ofereceu para testes e foi aprovado, dando início à carreira radiofônica. “Eu imitava Rodolfo Mayer em ‘As mãos de Eurídice’: ‘Parece que foi ontem, mas foi há sete anos'”, conta, fazendo a voz do famoso radioator no monólogo de 1950. Um ano mais tarde, contracenava com Fernanda Montenegro, Oswaldo Louzada, dentre outros, sob a direção de João Villaret, na peça “Está lá fora um inspetor”, do inglês J. B. Priestley. “Era um papel minúsculo”, lembra o ator que entrava em cena para dizer, apenas, “Senhor Birling, boa noite! Está lá fora, o inspetor”. Foi o bastante, porém, para que criasse um círculo de amigos, contatos e admiradores, numa trajetória que se dividia entre os palcos, a TV e o rádio.
Estão na popa, os calabreses!
Em cerca de 50 dias, o pequeno Natale, o pai e a mãe – “Ela era muito brava, mas também muito doce, suave, terna” -, a irmã Concettina, os avós e um grupo de italianos conhecidos viveram em alto-mar. Nascido na província italiana de Cosenza, o menino desembarcou no Rio de Janeiro aos 3 anos. “Era uma viagem especial dos calabreses na ré do navio, que era muito valorizada, por ser a última a sofrer com um acidente”, conta. A família passou por Ubá e Três Rios, até se fixar na capital fluminense, onde permaneceu até os primeiros anos da década de 1950. Durante os anos iniciais em Juiz de Fora, Natálio ajudava a família fazendo entregas para a mercearia que montaram. “Não era todos os dias, mas me ajudou muito”, pontua ele, afirmando que o dinheiro que ganhou com “mais fartura foi para um filme que fez com o José Sette, sobre a vida do Pedro Nava”. Em paralelo com o trabalho sobre duas rodas, o jovem empregou-se na Rádio Industrial e, depois, assinou a coordenação artística da Super B3, precisando, então, recusar a cidadania italiana para naturalizar-se brasileiro. “Sempre me senti brasileiro. Nunca voltei à Itália e não me deram condições de retornar à Europa.”
Está escrito, Luz!
Não havia segunda chance. “No radioteatro o texto ficava na mão para representar. Não pode errar toda hora. Podia um erro em 90 páginas. Lembra das locuções dos comerciais e noticiários da Globo? Era a coisa mais bonita! Sem um erro!”, avalia ele, que encenou o impactante radioteatro “Cristo total”, apresentado no campo do Sport Club em março de 1963. Um ano depois, quando os militares tomavam o poder, em 1964, Natálio chegava ao auge de sua carreira radiofônica, assumindo lugar na Rádio Tupi. “No Grande Teatro Tupi eu aprendi muito, tive professores entusiasmados”, recorda-se ele, sempre encantado com a cena carioca. “Vinha pouco teatro aqui para Juiz de Fora, naquela época. Depois é que começou a vir mais”, diz ele, que nasceu Natálio na rádio. “Fui fazer uma entrevista e me perguntaram o que queria fazer. Disse que queria teatro, mas o que tivesse para representar eu faria. No primeiro dia da seleção, queria ler o script até no ônibus. Quando me perguntaram meu nome, eu respondi: Natale Chianello. O homem, então, falou: ‘Não fica bem para nós! Natale é muito feminino. Pode ser Natálio! E em vez de Chianello, que dá a ideia de chinelo, põe Luz’. Aí eu perguntei: ‘Em homenagem a quem?’. E ele me disse: ‘Ao Carlos Luz, presidente do Brasil’. Acho que ele só ficou por quatro dias”. O Luz e a luz de Natálio permanecem.