O evangelho segundo seu Jair
O riso fácil e as lágrimas de saudade do homem que distribui santinhos nos sinais centrais da cidade
Na primeira semana foram duas, as tentativas. Na segunda, dois horários na terça e outros dois na quarta. Passada uma semana, uma nova procura. Virou o ano. Choveu. Alguém viu. E nada de seu Jair. Meses depois, encontro o senhor de estatura baixa, sorriso largo e voz alta, do outro lado da Avenida Rio Branco, andando em passos rápidos. Licença. Licença. Me dá licença. Bato no ombro dele. “Oi, seu Jair!”. Ele entrega um santinho com a imagem de Jesus Cristo. Digo a ele que quero ouvi-lo, contar sobre o homem de sobrenome Marcílio, 61 anos, 12 filhos e 12 netos. Falar sobre o homem que leva no pulso um relógio Puma azul sem bateria (presente do trânsito), que perdeu todos os celulares que teve, que se diz católico fervoroso e espiritualista pela convicção da avó que lhe dizia “Morre a carne e o espírito fica vivo, Jair”, que na ligeireza dos segundos do semáforo é o “homem dos santinhos” e na imensidão da vida é a força que uma oração pode representar.
Retidão precede a vida
O senhor é daqui mesmo, seu Jair? “Fui nascido aqui em Juiz de Fora, no Bairro Santa Cecília”, responde. Família grande? “Casei e tive 12 filhos”. Teve muitos irmãos? “Tive muitos, dez. Perdi dois. Meu pai trabalhava de pedreiro. Minha mãe trabalhava em loja, costurando, mas sem carteira assinada. Deu sorte que o meu pai trabalhava de carteira assinada e ela recebeu a pensão dele quando ele morreu. Ela chamava Maria, ele, José. Minha avó chamava Luzia. Minha família era toda com nome de santo. A família era grande, mas cada um corria atrás. Comecei a ajudar meu pai com 12 anos. Ia com ele, que ia me ensinando a medida da massa. Ele morreu com 50, de tanto fumar. Continuei trabalhando de pedreiro e aprendendo tudo. Mas chegou uma hora em que eu não aguentava mais, começava a doer tudo (no corpo). Aposentei no tempo do Lula. Um carro tinha passado em cima do meu pé. Tinha jeito de ele (o motorista) desviar, mas passou no meu pé. Pensei: ‘Como vou fazer, agora, para trabalhar na rua?!’. Graças a Deus, até hoje estou aqui. Meu trabalho é entregar a palavra. Minha mãe falava comigo: ‘Não tira de ninguém’. Meu pai falava: ‘Não faz transação errada’. Quando perdi o emprego fui entregar santinho para tratar dos meus filhos. E assim as pessoas começaram a me pedir para entregar. Todo mundo começou a gostar de mim e mandavam fazer dois mil, três mil santinhos para eu entregar. Fui ganhando moral. Tem muito tempo isso. Uma data muito longa. Não marquei quando comecei”, diz o homem de muitos sinais. “Quando vejo que tem cara suspeito, para não dar B.O., mudo de sinal”, ri. “Santinho do São Jorge, todo mundo quer! Na rua tem gente boa e gente ruim. Muitas vezes as pessoas fecham os vidros quando vou entregar. Aí penso: ‘Deus, deixa para lá! Um dia ele abre!’. Às vezes o coração das pessoas é tão bom que elas costumam chegar perto de mim e falar: ‘Toma R$ 1”, ou “Toma R$ 2”, e até “Toma R$ 5″. Quando não têm, falo que podem levar”, conta. O que leva na mochila? “Carrego só a minha blusa. Quando pego muito é que divido”. E o bico? “O bico é da Mariazinha, minha filha que já morreu, pequenininha.” E o apito? “Esse colar é da banda. E o apito é só enfeite. Posso apitar não. Já chamaram a polícia quatro vezes para mim, na rua, quando apitei. Uma vez, um homem no prédio abriu a janela e me jogou um ovo na testa. Fiquei bobo. Quando vi, já estava com a cara melada.”
Trabalho livra a dor
Doze filhos é muita coisa, seu Jair, não é mesmo?! “Tive 12 com uma mulher só. Tive duas meninas gêmeas e dois meninos gêmeos. Precisaram cortar ela (a esposa), porque, senão ela não ia aguentar (engravidar mais). Ela trabalhava na Santa Casa e eu era pedreiro. Dava para a gente viver. E a minha sogra ficava com os meninos. Quando casei, em 1976, não tinha nada. Ela estava com 16 e eu, com 20. Mas não deu. E quando não dá, tem que largar. Fui morar num hotel e um cara que me ajuda muito, pagou 15 dias até eu arrumar um lugar para morar. Deixei o apartamento no Jardim Casablanca com ela e fui embora. Fui morar com a minha filha (Simaria), num quartinho no lote que ela tem a casa dela, lá para os lados do Previdenciários. Saio todos os dias, a pé, e venho andando para o Centro. De noite volto de ônibus. Meu último ônibus é meia noite e meia, não posso perder. Chego no quartinho e a panela de comida está lá e a minha cama já está arrumada. De manhã cedo ela me chama: ‘Pai, vai descer hoje?! Já está na hora!’ Aí vou no banheiro, tomo café e saio. Chego cedo na rua e fico esperando o tempo ficar bom para eu poder trabalhar. Quando começa o movimento, eu começo a distribuir os santinhos. Fico assim até chegar o dia do pagamento. Quando chega o dinheiro, fico de boa, não corro, vou devagarinho. Já estou cansado, né?! Passei muita luta, nunca matei ninguém, nunca roubei ninguém. Muita gente me ajudou. Me davam pedaço de carne, mantimento. Com o dinheiro que pegava na rua, fazia compra e levava para casa, para não deixar meus filhos passarem fome. Tomava uma só (cerveja) e com o resto passava no mercado. Nunca fumei. Só bebo uma cervejinha de vez em quando. Pinga não gosto, tenho medo”, diz, lembrando do cunhado vitimado por uma cirrose. Despediu-se, também, do menino de 25 anos que lhe faz os olhos marejar. “Perdi dois filhos. O mais novo eu perdi porque ele vacilou. Levaram ele para a BR-040 e mataram ele. Depois disso fiquei sem esperança. Eu falava para ele sair fora, que não era coisa de Deus. Faz mais de um ano que aconteceu. Lembro que um cara veio na rua me cobrar. Falei: ‘Estou aqui para comprar as coisas para a minha família’. Aí ele falou que ia matar meu filho. Falei: ‘Se você matar ele, vai ter que me matar também’. Tirei o dinheiro, paguei e pedi para ele não dar mais nada para o menino. Ele (o filho) continuou a fazer transação errada com outros caras. Internei ele duas vezes, levei para a igreja, mesmo assim não teve jeito.”
Discussão exige convite
Estudou, seu Jair? “Até o quarto ano e parei. Depois, quando trabalhava, levei uma trombada na cabeça. A tábua bateu na beirada de uma laje e o resto veio para cima de mim. A firma não tinha capacete e eu perdi uma veia na cabeça. Fiquei em coma. Depois, comecei a ter desmaios. Ficou amassada minha cabeça, olha aqui! Depois tinha que tomar um remédio todos os dias, para o resto da vida, para não perder o lugar que eu estava. Gozado, rapaz, que me ocorreu de pegar o remédio e jogar no rio. Nunca mais me perdi. Só não consigo ler. Agradeço muito a Deus por não ter perdido a vida e hoje estar aqui, trabalhando sério”, responde. E o Botafogo? “Sou Botafogo, tenho oito camisas. Minha filha lava e deixa na gaveta. Fala: ‘Pai, quando você quiser usar, está limpinha!’. Assisto todos os jogos, mas só na televisão. Não gosto de ficar comentando. Meu pai me ensinou: ‘A gente não discute religião, nem, política, nem futebol!’. O cara, quando é muito fanático, quer brigar. Muitas vezes já me falaram, na Avenida Rio Branco, que meu time é um lixo, que era para eu tirar minha camisa. Não gosto de entrar em campo, também. Porque eles falam muito palavrão. Meu pai me ensinou e eu não gosto. Até as minhas netas, quando falam, chamo atenção delas. Nasci assim e vou morrer assim”, sorri, vestido numa camisa estampada com a imagem de Zé Pilintra. O senhor é feliz, seu Jair? “Estou feliz, mas já teve época de muita pressão, muita cobrança”. E sonho? “Quero continuar trabalhando, do jeito que estou fazendo, até o fim da minha vida.”