O público e o privado no Brasil: entre lençóis, joias e moedas
Apparício Torelly, o Barão de Itararé, dizia que o “homem público no Brasil costuma fazer na vida pública o que faz na privada”. Privada, no caso, é o vaso sanitário, e o trocadilho, mais atual que nunca. Na verdade, nos trópicos, nunca deixa de ser atual.
Joias, móveis, lanches, relógios, viagens, carros, etc. O cardápio é imenso, como também é a falta de republicanismo. Sem privilégio ideológico ou político, o patrimonialismo é algo – infelizmente – que faz parte do DNA do homem público no Brasil. E olha que a Constituição diz há 35 anos que impessoalidade, moralidade e republicanismo são valores básicos da vida pública.
Dessa tradição carente de consciência republicana, temos a materialização do não republicanismo no “homem cordial”, termo cunhado por Sérgio Buarque de Holanda. Para o pensador brasileiro, esse “sujeito” possui uma característica excêntrica no seu modo de ser: a cordialidade, movendo-se pela emoção, sendo incapaz de diferenciar entre o público e o privado, adverso às formalidades, subjugando ética, impessoalidade e moralidade. Tais características antropológicas podem ser conferidas a um contraditório estilo emocional do cidadão brasileiro que fez brotar e disseminar uma histórica habilidade a caminho da informalidade, havendo somente imposição de uma lei e de uma ordem considerada artificial, quando não desonesta, a favor dos interesses das elites políticas e econômicas de então.
Na vida cotidiana, tornou-se comum ignorar as leis em favor das amizades. Desmoralizadas, incapazes de se imporem, as leis não possuem tanto valor quanto, por exemplo, a palavra de um “bom” amigo; além disso, o fato de afastar as leis e seus castigos típicos é por vezes prova de boa vontade e um gesto de confiança, o que favorece boas relações de comércio e tráfico de influência. Um adágio secular traduz bem isso: “aos inimigos, as leis; aos amigos, tudo”. A informalidade era – e ainda é – uma forma de se preservar o indivíduo. Sob o verniz da Constituição, mantemos e alimentamos o patrimonialismo, o desprezo pelos direitos fundamentais e – maior das chagas da história nacional – a corrupção.
Impossível não mencionar, mesmo que derradeiramente, o último escândalo patrimonialista, que vem exatamente de quem diz de forma fria e irônica que é bastião da moral, da família e de Deus. Para além dos três conjuntos de joias que valiam mais de R$ 17 milhões, entraram na mira patrimonial os móveis do Palácio do Planalto, as moedas do espelho-d’água e até restos de carnes nobres. E nem vou mencionar a ordem para usar o avião presidencial na tentativa de retirar as joias retidas do Aeroporto de Guarulhos. E os lençóis que Michele jurou pertencerem a ela, mas foram comprados por licitação ao custo de R$ 35 mil?
Enfim, em que pese o patrimonialismo, como já dito, não ser privilégio de ideologias ou vertentes políticas específicas, nesse mar revolto que é a República brasileira há quem confunda o público com o privado e há aqueles que estão certos de que o público lhes pertence.