Menos um papelzinho
Apesar da minha incurável impaciência, vivo tentando ser uma pessoa melhor, em pequenas coisas e nas maiores. Procuro prestar cada vez mais atenção para que minhas falas e pensamentos não ofendam ou anulem o discurso de outra pessoa. Não jogo lixo na rua. Seguro a onda antes de soltar um comentário ácido sobre alguém que me irrita (se você me conhece, sim, esta sou eu me contendo). Fecho as torneiras de casa, apago as luzes, e tento priorizar, sempre que dá, os comerciantes locais. Toda vez que me lembro, abro mão da minha via da notinha fiscal da compra. Não é lá muita coisa, mas é menos um papelzinho no mundo. Na verdade, não só nas finanças, mas na vida, sempre que posso, abro mão de tudo que é papel.
Se tem papel, tem cobrança. E é preciso que haja mesmo para que o mundo funcione. Todo contrato tem a cobrança de que você se comporte de acordo com o que está impresso, não importa se ele é de emprego, de aluguel, de casamento, de prestação de serviço, de compra e venda. Papel tem regra, e a outra parte envolvida está sempre passível de se tornar credora. E, assim, a vida segue: somos cobrados o tempo todo: por nossos empregos, nossos locatários, nossos parceiros, nossas famílias (tem papel sim, certidão de nascimento!), nossos professores. Todo mundo a quem estamos vinculados por meio de algum registro documental (e, também, às vezes, por afetos que eles não são capazes de captar) não se furta em exigir que estejamos sempre em conformidade com o que prega o papel que nos une. A recíproca é verdadeira: também pleiteamos a parte que nos cabe nestes latifúndios contratuais.
Mas com amizade é outra coisa. Prova disto é que não tem papel. Não tem lugar algum onde se possa assinar para mudar o status de “(des)conhecido”, “mais um no mundo”, “chegado” para “amigo”. Não tem fila em que você possa entrar para fazer o requerimento e então ter o seu pedido de amigo liberado. Não tem código de barra para pagar o boleto, o pagamento ser aprovado e sua compra finalmente chegar (mesmo ficando presa por uma eternidade em Curitiba). Não tem nada que possa garantir a durabilidade e a satisfação mútua. Absolutamente nada. E, por isso mesmo, nossos amigos desempenham um papel (sem papel) tão grandioso em nossas vidas.
Toda vez que alguém vem com burocracia de amizade pro meu lado o efeito acaba sendo reverso, ainda que eu o faça inconscientemente. Estou cheia de conta, boleto, contrato e documento aos quais devo obrigação, mas com amigo não. Amigo não “tem que” nada. Porque aí acaba a magia. Acaba essa alquimia misteriosa que faz as pessoas persistirem em nossas vidas pelo simples fato de que queremos mutuamente que isto aconteça. Encerra-se a força sobrenatural de um encontro após meses ou anos sem ver alguém, só para constatar que, apesar do implacável tempo, “continua a mesmíssima coisa”. Não tem jeito. Sempre que um amigo ou amiga abana uma notinha de cobrança da nossa relação, eu respondo como faço no comércio: “Não precisa da minha via.” É menos um papelzinho no mundo.