Meus ídolos estão envelhecendo
Alguns anos atrás já, minha tia Tchatcha, habituée das histórias desta coluna, fez a encomenda de um texto. “Meus ídolos estão envelhecendo”, ela foi dizendo na época, contando como tinha ficado estupefata de ver que o Alceu Valença, cujas letras todinhas ela entoa, até fazendo o sotaque, já não tinha aquele cabelão cacheado ornado por chapéu, mas tinha agora uns chumaços esbranquiçados ainda cobertos pelo chapéu, que talvez ocultassem agora uma semicalvície. Não que fosse uma crítica, porque com sorte e saúde, a velhice é a única certeza que temos antes da certeza-mór, sumirmos do planeta. Era mais um desabafo, uma confissão, um espanto com o passar tão acelerado do tempo, refletido nos fios de Alceu, sem qualquer anunciação, sem que se pudesse ouvir seus sinais – muito menos sussurro de anjo ao ouvido.
Venho protelando a encomenda também não é de hoje, não por perceber a passagem do tempo na cabeleira dos artistas que amo, como a Tchatcha. Até porque a maioria deles já ostentava muitos anos quando nasci. Mas por um temor do tique-taque do relógio, sim. A vida anda tão acelerada que “corro demais” tornou-se a velocidade de referência, sem o bônus que Robertão tinha quando completava, com voz de veludo, “só pra te ver, meu bem”. Aliás, Tchatcha ama o Roberto Carlos, mas não chega a ficar surpresa com seus cabelos, mais ralos a cada especial de Natal.
Mas a mim, incomoda pouco que os ídolos que ouço e assisto estejam mais enrugados ou com mais fios brancos. Desculpem-me pelo clichê, mas a arte tem o poder irrefreável de manter a juventude, como aquelas fontes do desenho do Pica-Pau, em que um velhote de bengalas pula e sai todo garotão. A arte é imune ao correr dos ponteiros.
Já meus ídolos, não. Vejo, mas fico quietinha, como se não percebesse, que o caminhar é um tanto mais lento. Que a memória, vez ou outra, é um pouco traidora, e algum caso é contado, com ares de novidade, mais uma vez. As colunas, que sejamos honestos, nunca foram o forte genético, doem um cado mais, por esforços cada vez menores. Os cabelos brancos são encobertos com mais tinta e frequência, porque assim é desde quando ainda era possível contá-los. Os frascos de comprimidos aumentam, ao mesmo compasso que colesteróis, triglicérides e glicoses, sem falar na gradação das lentes do óculos.
Assisto a tudo acontecendo, do outro lado de uma mesa de almoço de domingo, enquanto as crianças nos rodeiam, urubuzando a sobremesa, e eu finjo que o tempo, como a mentira, tem pernas curtas. Talvez, nestes momentos, ele nem as tenha, e por isso não consegue andar, quanto mais correr. Meus ídolos estão envelhecendo. Mas embalada por Alceu, que sempre ouvi com a Tchatcha, me iludo e finjo não sentir, “dizendo não há mais coração”.
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