Maldita Geni!
Chico Buarque tentou avisar, era fim dos anos 1970. Fodossentos anos depois, assistimos, incrédulos, ao apedrejamento público e celebrado de Genis, que, como a dos versos do poeta dos zóizazuis, vêm do lugar mais à margem possível deste mundo cão em que vivemos. Geni da favela, geni sapatão, geni preta, geni “que devia ser estuprada”, geni “macaca”, geni “veadinho”, são muitas delas. Infelizmente, não falta pedra ou bosta, como anteviu Chico, para tacar em tanta Geni.
Como na canção buarquiana, estamos vendo – com interrupções intermitentes na programação da Globo – mais uma vez a profecia musical se cumprindo, e as Genis estão sendo, de novo, a redenção de quem já estava com pedregulhos na mão em riste, prontinha para o arremesso. “Maravilhosa essa cerimônia de abertura, olha que linda essa moça de bicicletinha na frente da delegação brasileira!” Em moça, leia-se Lea T, modelo trans que já pousou pra tudo que é grife maneira internacional – para dizer o mínimo -, e ainda hoje é chamada de “homem”, “monstro”, “lamentável” ou “vergonha da família” nos comentários de qualquer matéria em que seja citada (dá um Google e confere, é atrocidade garantida ou seu dinheiro de volta).
“Rafaela Silva, orgulho do Brasil, exemplo de superação”. Exemplo pra quem seguir, se cada vez que se fala em cotas raciais ainda tem quem ache que a população negra está sendo “favorecida”? Modelo pra quem se espelhar, se a falácia de que “para chegar lá, basta se esforçar” é tão repetida, neste país em que tantos medalhistas olímpicos em potencial são natimortos pelo preconceito, pela pobreza, pelo abandono, pela criminalidade e por um sem fim de acessos negados às oportunidades e aos direitos? Cadê o orgulho nacional na hora de reconhecer que milhões de pessoas precisam de programas sociais de inclusão para serem Rafaelas no esporte, na educação e em qualquer coisa que queiram na vida? “Superação” de que, se em doizmilidezesseis, ainda se lê, nos malditos comentários de publicações on-line, que a atleta luta “mais que homem” e que “sendo sapatão, deveria competir pela equipe masculina”? (Não estou inventando, li estes dois numa infeliz pesquisa que fiz enquanto escrevo).
“Esta Olimpíada é das mulheres”, “Jogue/lute/insira aqui seu verbo como uma garota”, estou só observando pipocar na internet. Que Olimpíada? A mesma que produz manchetes falando sobre o véu que cobria a cabeça das jogadoras de vôlei do Egito, em vez de retratar o fato de ser o primeiro time nacional feminino da modalidade? Os mesmos jogos movidos pelo espírito olímpico que exalta, em rede mundial, a quebra do recorde mundial da nadadora húngara Katinka Hosszu apontando seu marido e técnico como “responsável” pelo feito? É das mulheres mesmo, esta Olimpíada que sempre que cita o desempenho louvável da Seleção Brasileira feminina de futebol tem que compará-la, invariavelmente, à masculina, especialmente ilustrando com Marta e Neymar?
Perdoem-me pelo ceticismo, mas acho que já ouvi muito Chico Buarque nesta vida, e estou em um déjà vu incurável da trova de “Geni e o zepelim”. Toda esta adoração oportunista vinda de quem tanto desfez e desfaz das genis olímpicas me soa como o trecho em que “a cidade apavorada” vai beijar a mão dela só por temer que tudo seja explodido. Embora queira muito acreditar no contrário, sei que a profecia da MPB não serviu de escola, e que muito em breve, a cidade (na música, fora de perigo e na realidade, após as Olimpíadas) estará em cantoria, sem deixar os hoje “exemplos de superação” dormirem. Com pesar, já vejo mais pedra e bosta, travestidos de caracteres em um portal de notícias qualquer, sendo atirados por hipócritas nas então novamente “malditas genis”, “feitas pra apanhar, boas de cuspir”.