Do avô, Manoel Francisco
Caro Daniel,
o seu pai nunca se interessou pelo Botafogo, tampouco pelo futebol. Normalmente, saiba, o amor pelo clube vem primeiro. Pelo futebol, apenas depois. Não é que o desinteresse do seu pai pelo Botafogo tenha me furtado noites de sono. Nunca levei a cabo a tradição de acostumar o próprio filho às cores do clube desde criança de colo, embora confesse que o caminho até o Maracanã sozinho me frustrasse. Porém, como a cada ano conto um a menos de vida, reservo-me o direito da tentativa derradeira de constituir um herdeiro, já que não sei se conseguirei vê-lo, meu neto.
Quando tinha 17 anos, enchi a boca para cantar parabéns ao Flamengo junto a outras 40 mil pessoas. Era aniversário do rival e, como presente, lhe demos uma goleada por 6 a 0. Embora eu já tenha alguns anos de vida, ainda não consegui decidir se foi este o melhor dia da minha vida ou aquele em que encontrei a sua avó em General Severiano. Durante nove anos, cantávamos parabéns ao Flamengo durante todos os jogos em que nos enfrentávamos. Paramos apenas quando nos devolveram a goleada, mas os juros já eram altos.
Já com 34, vi Maurício nos tirar de uma fila de 1989 contra o mesmo Flamengo. Até quis dar ao seu pai o nome de Emil, mas a sua avó, já grávida e rubro-negra, não deixou. Dizia que não se dava o nome de Emil a uma criança, mas até hoje jogo no bicho por Seu Emil. Espero que seu pai não fique chateado por explicá-lo agora quem era Emil Pinheiro – ao menos não sou Bangu. É que não tive a oportunidade de comemorar muitos títulos. Não é para isso que se é Botafogo. Ganhar é apenas uma circunstância, não um ritual.
Cresci com as histórias de rádio que meu pai me assoprava na beira da cama sobre Heleno de Freitas, Quarentinha, Zagallo e Manga. Contei ao seu pai sobre Nilton Santos, Didi, Mané Garrincha, Gerson e Jairzinho. E quem me deu a última catarse foram Sergio Manoel, Donizete e Túlio. Nesta época, o seu pai, já criança, até colocava a única camisa que lhe dei de presente, mas não dava muita confiança para a televisão – a sua avó o achava muito novo para me acompanhar ao Maracanã. Acho que vestia alvinegro apenas para me agradar.
Vi um holandês, um japonês e um marfinense jogarem por nós, mas assisti também a três rebaixamentos. O último que testemunhei, e, provavelmente testemunharei, nos foi uma ironia miserável, porque, à frente do adversário, estava o filho de Jairzinho. Você vai aprender cedo, meu neto, que há coisas que, por alguma ordem metafísica, só acontecem com o Botafogo. Não se é Botafogo pela normalidade, mas pelo êxtase de um raro arrebatamento misericordioso. Perdoe o seu avô pela melancolia, mas, quando crescido, você entenderá que as mazelas de ser Botafogo são parecidas com as mazelas da vida.
Com carinho,
Manoel Francisco
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