O surdo de terceira
O futebol brasileiro, por nascença, atende ao ritmo cheio de síncopes da “imaginação percussiva” de Tião Miquimba
O futebol brasileiro perdeu o surdo de terceira de Tião Miquimba. Miquimba, explica Luiz Antonio Simas em “O corpo encantado das ruas”, é discípulo de Mestre André na bateria da Mocidade Independente de Padre Miguel. É que, certa noite, contam, os surdos de pergunta e resposta não estavam presentes em um ensaio da bateria. Miquimba então pegou um surdo e começou a tentar marcar o compasso binário dos surdos de pergunta e resposta. Mas, ao mesmo tempo, segue Simas, a intercalar batidas entre um tempo e outro. Mestre André gostou. E mandou fazer um surdo mais e menor do que os tradicionais. “O novo instrumento passaria a desenhar batidas inusitadas entre as marcações regulares”, completa Simas. É o surdo de terceira.
Miquimba explicou a empreitada com a expressão “imaginação percussiva”. E, pontua Simas, a vida que estamos levando nada tem a ver com a feitura de Tião Miquimba. O surdo de terceira foge à previsibilidade dos surdos de pergunta e resposta. E Simas o utiliza como analogia para se pensar as culturas de fresta, “aquelas que driblam o padrão normativo e canônico (…)”. O futebol brasileiro, por nascença, atende ao ritmo cheio de síncopes do surdo de terceira de Miquimba. Porque, em última instância, o futebol brasileiro é o improviso e, por isso, a transgressão, a subversão. É ludibriar o outro impiedosamente. Não há nada de ortodoxo, burocrático, normativo em como os jogadores brasileiros comportam-se em campo, na várzea ou nas ruas. Ou, ao menos, não havia.
Só que, de uns tempos pra cá, a transgressão parece sucumbir diante de uma espécie de automatização. Qualquer arroubo, qualquer gesto, qualquer movimento foram tomados por uma racionalidade extrema – expressões como “tomada de decisão” são um mero exemplo. Não resta espaço para a intuição, ilusões e erros. Até os corpos parecem os mesmos. E, consequentemente, os movimentos também, rígidos, duros. Os trejeitos para domínios, explosões, finalizações e saltos parecem exatamente iguais. Justiça seja feita, a automatização supera as fronteiras locais. Há um modelo de jogador para cada posição independentemente da nacionalidade. Todos os requisitos já estão dados. Cabem aos preparadores físicos, fisiologistas e técnicos a moldagem. Se não, deixam os países ao atingirem a maioridade para centros capazes de os talharem.
Justamente por ser regido pelo surdo de terceiro de Miquimba, o futebol brasileiro parece vestir uma roupa em tamanho menor que o seu. De tão apertada, parece uma camisa de força. A automatização é contracultural. Embora alguns referenciais tenham se popularizado nos últimos anos, os jogadores de cada país são formados em contextos muito particulares, com formas de expressão ainda mais distintas. A burocratização do jogo por si só seria melancólica. Só que, de tão ferrenha, a engolimos resignados, como se assim as coisas fossem. Como se fosse o que a história, ditada sabe-se por quem, nos reservasse apenas isso. Como se avançássemos em uma linha evolutiva com direção e sentido na contramão da “imaginação percussiva” de Miquimba.