Voto e cidadania: crescimento da população em situação de rua intensifica desafios para a próxima gestão municipal
Especialista destaca busca de recursos e necessidade de pensar uma política integrada direcionada para esse grupo como algumas das soluções
De 2016 a 2022, o número de pessoas em situação de rua no município aumentou 110%, de acordo com o relatório do Censo e Diagnóstico da População Adulta em Situação de Rua de Juiz de Fora, elaborado através de uma parceria entre Prefeitura de Juiz de Fora (PJF) e Universidade de Juiz de Fora (UFJF). O trabalho buscou identificar características socioeconômicas e demográficas para que sejam desenvolvidas políticas públicas atualizadas que atendam as necessidades desse grupo.
Após o diagnóstico, o Executivo instituiu um Plano Municipal para essa parcela da população, mas demandas relacionadas à saúde, alimentação e emprego, por exemplo, ainda são desafios para a próxima gestão. Neste domingo (15), o projeto ‘Voto e Cidadania’, da Rede Tribuna, conversou com um especialista que atuou como coordenador no Censo para elencar as principais lacunas em relação à assistência social e direitos humanos enfrentada pela cidade no momento.
Esta é mais uma matéria do projeto “Voto e Cidadania” da Rede Tribuna. Durante o período eleitoral, aos domingos, nossa equipe abordará desafios da cidade, surgidos a partir da Pesquisa “Fala, JF”, que apurou as prioridades da população na destinação de recursos do Orçamento Municipal. A partir da publicação destas reportagens, a Tribuna elaborará uma pergunta relacionada ao tema. A questão será enviada a todos os candidatos na segunda-feira seguinte, às 8h. As respostas, de no máximo 2.000 caracteres, devem ser enviadas até as 15h do mesmo dia, e serão publicadas na terça-feira, em nova matéria.
Maioria da população de rua é formada por homens pretos entre 30 e 50 anos
O professor da Faculdade de Serviço Social da UFJF Alexandre Arbia participou, como um dos coordenadores, do Censo e pontua que os índices de pobreza podem ser ainda maiores, já que o estudo levou em consideração a definição estabelecida pela política nacional, que se refere apenas àqueles que não possuem moradia convencional e fazem uso das ruas, praças, prédios abandonados e acolhimentos para dormirem.
A partir do levantamento foi possível verificar a existência de um perfil médio, formado majoritariamente por homens cisgêneros, heterossexuais, pretos ou pardos, entre 30 e 50 anos, que estão há mais de 5 anos nas ruas. Além disso, a ausência de moradia convencional, vínculos familiares rompidos e/ou interrompidos e condição de pobreza extrema foram elementos encontrados em comum.
O pesquisador aponta que direitos e assistência da população em situação de rua estão amparados pelos mesmos direitos de acesso a políticas e serviços públicos que todos os cidadãos. No entanto, esse grupo possui características particulares diferentes da outra parcela da população, por isso, as ações e políticas públicas precisam de uma abordagem articulada entre os serviços gerais já existentes e os específicos que ainda precisam ser criados.
Essa população tem especificidades, enraizadas em elementos de elevado grau de complexidade – que envolvem desde demandas emocionais (e/ou de saúde mental), de saúde em geral, sociais, econômicas, laborais, habitacionais, de lazer, etc. A interação dessas dimensões é que faz da situação de rua um fenômeno extremamente complexo, pois ela não pode ser abordada apenas “setorialmente”, ou seja, da forma fragmentada e desarticulada como funcionam as políticas públicas no Brasil, em geral.
Acesso a saúde e déficit de abrigos são principais questões
Entre os principais desafios estão má alimentação, precárias condições de higiene, acesso a saúde e déficit de abrigos, além das dificuldades envolvendo oferta de qualificação e emprego para essa parcela da população. Conforme o Diagnóstico, 48,2% e 44,6% afirmam que precisam de emprego e moradia, respectivamente, para sair dessa condição.
Para o professor, a questão da saúde é um ponto bastante sensível. Ele cita a estratégia “Consultório na Rua”, instituída na Política Nacional de Atenção Básica, que leva atendimento médico para fora das unidades de saúde, como exemplo de serviço que faz a diferença. Mas comenta que é fundamental aliar todas essas questões a um serviço acolhedor de abordagem social para criar relações de confiança e facilitar as demais áreas de atuação.
“Noutros termos, não basta achar que o único problema é ‘retirar’, ao custo que for, o indivíduo da rua; ele precisa de mais: ele precisa de um trabalho intenso, em aspectos integrais, para retomar o controle sobre sua própria vida. De todo modo, os municípios, palco da vida cotidiana, precisam orientar suas práticas nessa direção. Se o chefe do Executivo, seja ele quem for, compreende que não há saídas fáceis para o problema – desde a captação do recurso, passando pela elaboração à execução da política – já é um começo”, diz Arbia.
Cenário aponta poucos recursos e ausência de política integrada efetiva
Em seis anos, a população de rua de Juiz de Fora passou de 384 pessoas para 805. O período de disseminação da Covid-19 afetou consideravelmente esse dado. Segundo o estudo, 35,3% foram para as ruas durante a pandemia. Além disso, o empobrecimento médio da população nos últimos dez anos e a crise fiscal das unidades da federação contribuíram para este aumento significativo, conforme explica o professor. Dessa forma, o perfil do morador em situação de rua mudou, muitos são pessoas que perderam o emprego e não conseguiram mais pagar um aluguel. Mais da metade (54,2%) trabalhavam de carteira assinada antes de irem para as ruas, e 71% possuíam domicílio antes de dormir nas ruas.
Para mudar esse cenário e oferecer um maior suporte a esse grupo, Alexandre chama atenção para a necessidade de buscar recursos. “Não há políticas públicas sem recursos e, nesse caso, os municípios são os que mais sentem as consequências.” Mas para além disso, o pesquisador avalia que é preciso pensar uma política integrada direcionada para essa população, que envolve a capacitação contínua dos diversos técnicos que atuam nas políticas públicas para lidar com a especificidade desse público, além da expansão integrada de serviços específicos.
“É preciso compreender que a questão não é de responsabilidade apenas do poder público: as associações organizadas da sociedade civil precisam ajudar a compor a solução, precisam ser parte da solução; participar ativamente e de modo sério das discussões de elaboração e da execução das ações. Se as associações da sociedade civil não se envolverem de modo sério e técnico, ficará muito difícil para qualquer prefeito ‘resolver’ a questão.”
‘Quanto mais pobre, menos direitos’
Segundo o professor, o campo da assistência e dos direitos humanos enfrenta gargalos históricos no país, com recorte de classe social. “Qualquer pessoa sabe que, quanto mais pobre, menos direitos – isso na prática; não na lei. Eu poderia fazer essa afirmação com base em muitos autores e de vários matizes, estudos sociológicos comprobatórios etc.; mas não é necessário, pois as pessoas sentem isso no cotidiano. Tem a ver com nossa formação social e histórica, com o nosso passado e com o imaginário que criamos, que orienta nossa vida prática.”
Neste sentido, Alexandre afirma que os trabalhadores em geral e, dentre eles, os mais pobres, são os que mais dependem das políticas de assistência social, previdência e saúde pública. “O gargalo, portanto, é um gargalo estrutural que aparece sob a forma de serviços precários, demorados, ineficientes, legislações que ‘não pegam’ e direitos que não se materializam – e tudo isso se torna absolutamente ‘normal’.”
O pesquisador finaliza dizendo que, para reduzir o problema, é necessário haver padrões elevados de saúde, educação, habitação, emprego, renda, segurança, locomoção e lazer, e uma fiscalização severa do cumprimento dessas metas. “Sem uma redução da desigualdade, o fosso entre cidadãos e não-cidadãos ou subcidadãos se aprofunda.”