A Ășltima vez que estive com o cachorro caramelo, aquele articulado vira-latas de mĂ©dio porte e pelagem curta e cor-de-mel, fora em maio, quando revelei a ele que adotara um cĂŁo. Na Ășltima semana, Ă porta do FĂłrum Benjamin Colucci, tornei a vĂȘ-lo. Liderava uma pequena matilha no sentido Rio Branco-Santo AntĂŽnio. Reconheci-o no ato. Deixou o grupo, fez sinal para que seguissem sem ele e veio ter comigo.
– Problemas legais? -, perguntou retoricamente. NĂŁo havia preocupação em sua voz.
– NĂŁo, apenas esperando meu sogro, trouxe-o para buscar um documento.
– Ă de causar perplexidade como vocĂȘs humanos deixaram-se enredar pela burocracia jurĂdica. Impressiona a quantidade de penduricalhos, adendos, exceçÔes e aditivos que foram instituindo ao longo dos anos a seu jĂĄ colossal cĂąnone. VocĂȘs criaram um monstro. E ele os mastiga diariamente, sem que ao menos se deem conta disso.
– VocĂȘ entende de direito tambĂ©m?
– Apenas como observador. E apenas o direito ocidental, esse que deriva das crenças cristĂŁs, assentado em valores como culpa, castigo, perdĂŁo. Ă bastante patĂ©tico. A natureza tem leis muito mais simples.
NĂŁo custa lembrĂĄ-lo, caro leitor, Ă© um cĂŁo bastante culto.
– Mas diga-me, jĂĄ devolveu o cachorro? Gerson Charles, nĂŁo Ă©?
– VocĂȘ se lembra.
– Claro. Sua famĂlia jĂĄ se entediou? Mandaram-no de volta ao abrigo? Ou deceparam-lhe os testĂculos para que amanse?
– Nem uma coisa nem outra. Surpreso?
– Devo admitir que sim.
Aquilo me fez vir Ă boca um saborzinho de vingança. Ele estava certo de que nos livrarĂamos do cĂŁo em poucas semanas.
– Temos lidado bem com o alvoroço adolescente do Charlie, se quer saber. Apesar da destruição de todas as plantas do quintal, dos brinquedos despedaçados em minutos, dos buracos de meio metro de profundidade que fizeram do gramado um campo minado. Outro dia o fiz caminhar 6 quilĂŽmetros comigo. No trecho final ele pedia para deitar em qualquer canto de sombra que aparecesse, linguĂŁo pra fora, ofegante. Dormiu a tarde inteira quando chegamos em casa. NĂŁo Ă© para gastar energia?
O cachorro caramelo me olhou com desdém. Depois correu o olho pelo largo da praça, onde iam gentes esquecidas da pandemia.
– Queria ver vocĂȘ caminhando 6 quilĂŽmetros com uma pessoa te puxando para trĂĄs com uma coleira no pescoço.
– NĂŁo faça drama. NĂŁo posso levĂĄ-lo solto pela rua, sob pena de se perder, de pular nas pessoas, de apanhar de cachorros maiores que ele, de se enfiar embaixo das rodas de uma moto.
– De ser livre, vocĂȘ quer dizer.
A tenacidade do cachorro caramelo brasileiro às suas causas e crenças tem que ser estudada pela sociologia veterinåria.
– LĂĄ vem vocĂȘ de novo com essa histĂłria da busca pela alma do lobo?
– NĂŁo. Essa conversa jĂĄ tivemos. De qualquer forma, nĂŁo posso me estender no assunto, a pĂĄgina nĂŁo esticarĂĄ de tamanho e preciso ir. Os outros estĂŁo me esperando. E seu sogro tambĂ©m jĂĄ vem lĂĄ.
Sempre me surpreendo com aquele vira-latas de médio porte e pelagem curta e cor-de-mel. De fato, quase estouro o limite de palavras imposto pelo jornal. E, de fato, era meu sogro quem vinha, elegante com sua bengala de mogno, que usa desde o dia em que se enfiou embaixo das rodas de uma moto.