O barítono

Por Wendell Guiducci

A voz dele ressoava pela Rua Attilio Pastorini, alta, potente, cristalina. Eu descia a calçada escangalhada carregando uma porção de uvas e uma bandeja de morangos, meus olhos buscando o rastro que os ouvidos apanhavam. É o caminhoneiro cantando? Tão forte, da boleia? Ou alguém das janelas envidraçadas?

Um Corsa rebaixado entra na rua arrastando sua barriga férrea, estilhaçando a melodia que se recompõe tão logo ele dobra a esquina rumo ao diabo que lhe carregue.

Lá adiante, na interseção com a Avenida Pedro Henrique Krambeck, desvela-se o misterioso barítono: um catador de sucatas empurrando sua carroça, os pés metidos em grossas botas de operário, a roupa molhada de garoa-suor, louvando com um hino o deus que o colocou ali, de pé, musical, determinado, vivo.

Passo por ele rumo ao meu carro, estacionado alguns metros adiante. Entro, abro as janelas e silencio o rádio, de modo que possa continuar ouvindo a cantoria do catador. Ele passa por mim e me cumprimenta, bom dia, eu arranco e respondo, bom dia, e ele ô chefe, tem um trocado pra eu tomar um café, eu encosto. Olho pelo retrovisor, ele vem ressabiado, achei que o senhor ia me xingar igual um outro ali atrás, vai morrer em outro lugar, morador de rua.

“Vai morrer em outro lugar.”

Eu entrego a ele um trocado, sua voz é muito bonita pra cantar, digo, e ele, eu sou cantor, eu canto na igreja, sou evangélico, e eu dou os parabéns, desejo sorte – e não sei bem o que seria sorte pra ele, encontrar boas sucatas ao longo da Pedro Henrique Krambeck até o Centro de Futebol Zico, servir-se dos restos que descartamos na Cidade Alta, ou tomar um bom café, agradar o pessoal do culto com sua voz, esse insuspeito Tito Gobbi de vestes rotas – e sigo minha viagem até em casa.

O rádio ainda desligado.

Um dos couverts mais bem pagos da minha vida.

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci é jornalista formado pela UFJF. Foi repórter e editor da Tribuna entre os anos 2000 e 2024. Hoje assina, como colaborador, a coluna de crônicas "Cronimétricas". É autor dos livros de minificções "Curto & osso" e "Suíte cemitério", e cantor da banda de rock Martiataka. Instagram: @delguiducci

A Tribuna de Minas não se responsabiliza por este conteúdo e pelas informações sobre os produtos/serviços promovidos nesta publicação.

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade pelo seu conteúdo é exclusiva dos autores das mensagens. A Tribuna reserva-se o direito de excluir postagens que contenham insultos e ameaças a seus jornalistas, bem como xingamentos, injúrias e agressões a terceiros. Mensagens de conteúdo homofóbico, racista, xenofóbico e que propaguem discursos de ódio e/ou informações falsas também não serão toleradas. A infração reiterada da política de comunicação da Tribuna levará à exclusão permanente do responsável pelos comentários.



Leia também