Um encontro bem Loki com Arnaldo Baptista no Templo Valvulado
O ex-Mutante está em São Paulo para noites de shows que acontecem até o fim de semana. O relato a seguir é atravessado por uma conversa que aconteceu em um apartamento-estúdio de um colecionador de amplificadores valvulados
São Paulo – Dobrei à esquerda na 13 de maio, um prédio vazava a trilha daquela tarde em Bela Vista, olhei para o alto buscando ser desvendada pela janela. “Templo Valvulado”, assim foi como Arnaldo Baptista nomeou aquele apartamento de dois andares com caixas Macintosh restauradas da década de 1950, PA analógico e um acervo infinito de jazz e rock’n’roll em CD, vinil e livros de música. Quem leu ou ouviu as últimas entrevistas de Arnaldo já sabe sobre um possível clube de colecionadores de amplificadores valvulados que está tentando fundar. A primeira vez que pisou nesta casa-estúdio, a convite do proprietário Rubens Azevedo, Arnaldo e Lucinha, sua “menina”, ficaram alucinados. “Fiquei desbundado com o equipamento e falei com Lucinha: ‘Me filma tudo que aqui tem’. Na outra vez que viemos, ela filmou tudo. Depois eu pedi ao Rubens uma lista de todos os amplificadores que ele tinha, ele me deu, e estou tentando acompanhar”, conta Arnaldo, rindo e dizendo que ainda não sabe se algum dia vai gravar algo por ali.
Toda vez que vem a São Paulo, Arnaldo passa pelo templo (oficialmente Studio 8). E, nesta última quarta-feira, 16, enquanto eu terminava um café em busca do som, sabia que era lá que ele estava. Cruzei o asfalto e chamei o elevador. Oitavo andar. Música alta ao vivo. “Toc, toc, toc”. Não vão me ouvir. A porta destrancada parecia-me um convite para entrar. Destravei-a e caí como Alice Através do Espelho em uma casa do tabuleiro da vida que me levou a uma época atual com atmosfera saudosista, em meio a uma reunião intimista de figuras da música brasileira. Ao centro da segunda sala, com um piano de cauda logo atrás, estava Arnaldo Baptista sorrindo pelos olhos, com camisa de flores cor-de-rosa, Lucinha sentada a seu lado usava uma camiseta preta, pintada à mão pelo marido, escrito: “Arnaldo”. Ela vibrava junto a ele no ensaio da banda organizada por Rodolfo Krieger (Cachorro Grande) que fará um show-homenagem ao ex-Mutante no domingo, 20, na Caixa Cultural SP, após três datas consecutivas de “Sarau o Benedito?”, com Arnaldo Baptista solo, em piano e voz, com projeção de seu trabalho de artes plásticas, que inclusive já foi exposto na galeria do espaço.
“Vai lá dar um abraço nele e senta ali, podem ir conversando”, falou Sônia Maia, assessora. Me apresentei ao casal Arnaldo & Lucinha, que vez ou outra percebo de relance nas ruas de Juiz de Fora. A cadeira ao lado estava vazia para os jornalistas que chegariam para entrevistá-lo. Trocar diálogos com Arnaldo Baptista é se atirar ao inesperado de uma mente que vai embora em fluxo contínuo. Em um processo de “desjornalismo”, queria mais era ouvi-lo e observar seus olhos que brilham em tamanhos diferentes.
Entrevista Arnaldo Baptista
Um solo de bateria com ruídos de disco voador era a vinheta para que déssemos início à nossa primeira conversa.
Tribuna – Você tem a intenção de gravar aqui no Templo Valvulado?
Arnaldo Baptista – Ainda não pensei nisso, mas em casa eu tenho um gravador melhor. Lá eu tenho tudo de acordo com o que quero. Minha bateria são dois bumbões e dois chimbals, então é bem diferente.
Pensa em fazer um disco mais piano e voz como o “Singin’ alone” (1982), no formato como você tem feito o Sarau o Benedito?
Às vezes, no meu próximo LP, eu consigo fazer um lado que tenha a ver com esse ambiente, mas para mim é difícil selecionar tudo que vou fazer. Às vezes, penso em fazer um blues, mas acaba uma lenha. Eu não controlo tudo né? Mas eu gosto destas músicas íntimas. Tem a ver com música clássica, porque é difícil tocar rock sem o resto dos outros instrumentos. Mas eu vou levando assim.
Sobre seus estudos em Juiz de Fora, onde você tem um gravador e seus instrumentos, você articula a arte como uma só coisa? Ou tem um momento para a música e outro para as artes plásticas?
É num sentido assim… em geral eu faço o que me dá vontade de fazer. Às vezes, eu estou em uma de baterista, eu estudo uma semana bateria. Agora a próxima coisa é fazer um solo de bateria, então estou estudando isso ultimamente. Mas às vezes eu fico em uma de artes plásticas e enveredo por essa parte e esqueço a música. Às vezes eu ligo a guitarra também. Tenho estudado bastante a guitarra porque tenho comprado pedais, comprei compressor, phaser e oitavador. Mandei trocar o captador da minha Gibson que era Epiphone e não tinha saída. É igual a Fender. Aí mandei trocar para o captador Gibson e agora ficou perfeito.
Esse solo de bateria que você está criando é para uma música em específico?
Eu vou levando a minha vida, eu ouço o que eu já fiz até hoje, e penso: ‘Agora falta uma coisa no contrabaixo’, e a última vez eu achava que faltava um solo de bateria. Então vou fazer isso para que as próximas músicas sejam assim. Vou fazendo melhor. No sentido de levar a vida e ver onde se enquadra o equipamento e onde não se enquadra.
“Em função da música que componho, às vezes fico em função do céu, das estrelas. Outro dia, fui à casa de uma costureira e vi um disco voador passar, eu nunca tinha visto. Eu vi o disco voador ultrapassar a velocidade da luz que o Einstein falou que era impossível”
Qual foi a última música que você compôs?
Eu não estou lembrado. Eu penso em uma próxima para fazer: “O absoluto obsoleto”, que tenha a ver com o meu coração. Mas eu ainda não compus, talvez eu componha em função desse nome. A válvula é o absoluto, mas em todos os shows não é, é o obsoleto.
E essa você vai gravar no absoluto ou no obsoleto? No analógico ou no digital?
Eu vou fazer uma coisa que comprima tudo e chegue a uma conclusão. Porque se eu falo de amplificador valvulado, quem está ouvindo a música não tem em casa, o amplificador é um horror, é o obsoleto. Então no absoluto eu falo as coisas que são melhores. Eu estou fundando um clube dos possuidores de amplificadores valvulados, porque é muito difícil para mim colocar em palavras a diferença de um amplificador digital e valvulado, então eu fiz esse clube, porque se a pessoa possui um, ele vai, aumenta o volume do dele e vê que é diferente.
Em Juiz de Fora, tem o hábito de contemplar o céu e a natureza?
Em função da música que eu componho, às vezes eu fico em função do céu, das estrelas. Outro dia, fui à casa de uma costureira e vi um disco voador passar, eu nunca tinha visto. Minha mãe me contou uma vez que quando eu tinha uns 10 anos ela viu, mas eu não acreditei. Dessa vez eu vi. “Roll over Einstein”, que nem “Roll over Beethoven”! Eu vi o disco voador ultrapassar a velocidade da luz que o Einstein falou que era impossível, mas na minha frente ele apareceu, desapareceu, depois apareceu novamente. Quando ultrapassava a velocidade da luz, desaparecia. Isso me fez pensar que a gente tem tanta coisa para perceber e pensar, sobre o quanto a gente é importante em um universo de milhões de planetas na Via Láctea e que outra raça também é importante, e talvez eles nem ouçam. A Lucinha estava lá comigo e viu também.
Em certo momento Arnaldo diz a respeito de um possível encontro com Ronnie Von, que foi um apresentador de televisão responsável por dar visibilidade aos Mutantes em seu programa “O Pequeno Mundo de Ronnie Von”, além de ser músico, ator e ter sido quem sugeriu o nome ao trio. “Eles falaram que o Ronnie Von vem aqui e quer encontrar comigo. Ainda não arrumei horário e tudo, mas vai ser um prazer encontrar o Ronnie, Ronaldo Nogueira, nogueira de nozes, será que ele come noz?” Rimos, seguimos a prosa, até darmos uma pausa para os momentos fluírem. Ronnie Von, inclusive, faz pouco tempo gravou um disco e um vídeo no Studio 8 onde estávamos.
Lucinha se aproxima, sempre carinhosa com Arnaldo, e pergunta como ele se sentia naquele fim de tarde no templo. Ela é quem o ajuda nas redes sociais, mostrando o cotidiano de Arnaldo Baptista em poses e frases que transpassam sua espontaneidade nonsense. Nesse momento, outro jornalista se aproxima para conversarem, vou até a varanda, logo Lucinha chega, e começamos a conversar despretensiosamente. Ela me conta sobre a vida “nômade” dos dois, que têm a casa em Juiz de Fora, mas às vezes passam meses em um apartamento em Belo Horizonte. “Juiz de Fora não tem cinema de arte nem aeroporto”, ela diz. Às vezes, vão ao Rio de carro com antecedência para pegar um voo, e nisso se vão horas. Logo que vê a gata fêmea que tem na casa, ela diz: “O Arnaldo vai amar a gatinha, ele é louco com animal”. Pergunto se eles não têm animaizinhos de estimação em casa, mas não mais, agora ele vive a brincar com os bichinhos da vizinhança. Inclusive em seu próximo disco tem uma música infantil e felina. Comentei com Lucinha sobre o aniversário de Arnaldo, de 70 anos, em 6 de julho próximo, se costumam celebrar de alguma forma. “Festa temos sempre que chamar tanta gente, são muitos amigos e família, acaba não sendo viável. Mas vou pensar em um bom presente. Eu já fiz 70, mas acabei não comemorando”, diz ela, surpreendendo-me, parecia mais jovem.
Rubens Azevedo estava próximo, e pedi para conhecer um pouco mais do espaço. Sabendo que Arnaldo é louco com amplificadores e PA valvulado, ele fez contato com Sônia e Lucinha convidando-os a levarem Arnaldo para essa experiência. No segundo andar, há um cômodo dedicado aos CDS de jazz, cobrindo as paredes com Coltrane, Miles Davis e outros instrumentistas. Desde garoto Rubens começou sua coleção musical, não toca nenhum instrumento, mas é fissurado por música, e isso fez com que sua casa fosse um dos maiores acervos de equipamentos valvulados e local para grandes nomes da música se reunirem. Em outra sala, pilhas de LP e DVDs cobriam as paredes. “O Arnaldo ficou louco por causa das válvulas do som, ele se sente à vontade aqui. Duas vezes que veio, estava empolgado, sentou ao piano, cantou, tocou, e nós gravamos”, conta Rubens. A casa-estúdio virou um local de ensaio e encontros musicais sublimes, Johnny Rivers fez ensaios em sua passagem pelo Brasil, e nos próximos dias o baixista Rubem Farias vem com o guitarrista Mike Stern ensaiar no templo.
Arnaldo na voz de Karina Buhr
“Sentado ao lado da estrada” começa a ser tocada no andar de baixo, desço as escadas, e Arnaldo está sentado, ainda no mesmo lugar, assistindo a uma espécie de concerto particular. O sotaque pernambucano de Karina Buhr deixava as frases encantadoras de ouvir: “Puxa se eu tivesse a moto!”. Completando a banda formada por Rodolfo Krieger e sua guitarra SG, estavam o baterista Pedro Leo, o baixista Eduardo Barreto e o tecladista Charly Coombes, que reside no Brasil. Tocaram “Trem” por inteiro, e talvez esta recapitulação possa ter ajudado Arnaldo a guardá-la para apresentar de maneira completa no show da noite seguinte.
“Estou entrando em contato pela primeira vez com o conjunto. No que cada um faz. Está sendo legal. O baterista tem uma repicada maravilhosa, o teclado tem uma coisa boa de técnica, de oitavas, e eu acho que está sendo bom o Krieger na guitarra, está muito boa”, diz Arnaldo enquanto observa a banda terminando de passar as músicas. “O rock reúne o lado que cada um dos músicos acha melhor. Eu adoro o “Yes”, mas o baixista Chris Squire usava um baixo igual a esse (aponta para o Rickenbacker), que eu odeio. E Os Mutantes também, né? É uma coisa que tem a ver com o conjunto”.
Em processo de rejuvenescimento
“Ah, que maravilha, que bom. Não lembrava”, disse Arnaldo quando perguntei de seu aniversário de 70 anos após terminarem o ensaio do show-homenagem. “Eu tenho um endereço na Califórnia onde você faz um mergulho em coisas geladas e acorda daqui a 10 anos ou 10 mil anos, é o que penso em função da vida”. Arnaldo Baptista está sempre em processo de rejuvenescer. Inclusive, faz pouco tempo que começou a entender a guitarra de outra forma. “Eu tenho muito a destrinchar na guitarra porque foi recente o que eu descobri, tenho que trabalhar para ir adiante nisso. A gente sente, com isso, o quanto ainda temos para aprender”, diz.
Deixamos o apartamento juntos. Desci o elevador com Sônia, Lucinha e Arnaldo como se pegasse um “trem”, uma “garupa” ou um “disco voador” de volta para um lugar entre a realidade e o sonho. Iam jantar, e Arnaldo me contou que adora vir a São Paulo por ser a capital da gastronomia, com restaurantes italianos, árabes e japonês. “Até amanhã!”, nos despedimos.