Caminhos entremeados
Nascida em tumultuadas esquinas ou em refinadas salas de ensaio, ela ganha sempre o mesmo nome: arte. E, fiel, origina-se da emoção do homem, seja ele um palhaço de rua ou um spalla de orquestra. No início da década de 1970, o escritor Ariano Suassuna, um dos fundadores do Movimento Armorial, provou ser possível mesclar as coisas e realizar uma arte erudita brasileira a partir de raízes da cultura popular. O movimento – que se estendeu por pintura, música, literatura, dança, escultura, arquitetura, teatro, gravura e cinema – teve a participação de artistas nordestinos e recebeu apoio da Universidade Federal de Pernambuco. Ainda hoje, os criadores armoriais se manifestam por todo o país. E por falar em mistura, o Rock in Rio 2011, que termina hoje, presenteou a história com momentos incomuns, como o Concerto Sinfônico Legião Urbana e Orquestra Sinfônica Brasileira, na quinta.
Em Juiz de Fora, nos diversos campos, existem produções vindas do povo e outras pensadas em espaços acadêmicos ou canônicos. Com o propósito de estimular o diálogo entre os artistas de cada atmosfera, a Tribuna promoveu quatro encontros. Nas artes plásticas, uniu pintura e artesanato. Na música, jazz e samba. Na dança, possibilitou um bate-papo entre balé clássico e hip-hop, e no teatro, uma troca de figurinhas entre folia de reis e a montagem de uma farsa medieval. Em todos os casos, os convidados chegaram à conclusão de que uma estrada artística pode sempre entremear-se com outra. O destino? Um só. O público.
De boné e sapatilha
Um pouco tímido entre tantas meninas de "collant", Rafael Toti, em silêncio, parecia imaginar novos passos para seu trabalho a partir daqueles gestos suaves. Depois de se embrenhar no espaço de ensaio do Ballet Misailidis, o articulador cultural da Funalfa e professor de danças urbanas conversou com a professora Bruna Helena e o ensaiador Harley Arruda. O trio descobriu pontos em comum entre o clássico e o street. Para começar, o preconceito. Se muitos ainda olham torto para um menino de boné a rodopiar pela praça, o mesmo acontece com aquele que escolhe a sapatilha. "Os motivos são diferentes, mas o desafio é o mesmo", menciona Arruda, ator que se especializou em teatro musical.
Os três artistas, que lidam com crianças no dia a dia, destacam a força tranquilizante e reflexiva da dança. A criação, em todos os casos, germina na alma do indivíduo. "É claro que ela sai de diferentes formas e, depois, encaixa-se em variadas regras", observa Arruda, citando uma frase do japonês Yoshi Oida, na qual ele diz que quando um ator aponta a Lua, importante é saber se o público a viu. Bruna faz coro, completando que toda arte sincera pode chegar à plateia. "O problema é que, no Brasil, uma apresentação na praça lota, mas, no teatro, nem sempre."
Segundo Toti, que começou a dançar com 17 anos no Bairro Ipiranga, os agentes culturais em Juiz de Fora necessitam possibilitar mais trocas de conhecimento. Participando do último Festival de Joinville, ele assimilou muitas expressões, do clássico ao contemporâneo, que podem ser usadas em seu trabalho. Em paralelo, Bruna afirma ser influenciada pelo hip-hop, mesmo que, no balé, isso apareça de forma sutil.
Bambu e traço
Logo no primeiro dia de aula, o professor enxergou coerência criativa naquele trabalho. "Ele tinha a cara da Nádia", conta o artista plástico Petrillo, também docente do curso de design de interiores do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES/JF), referindo-se ao artesanato feito pela aluna Nádia Guedes. Apelidada de mulher do bambu, ela é capaz de usar o material até mesmo em uma estante "high-tech", como conta Petrillo. Recentemente, ele esteve no Espaço Cultural Correios com a mostra "Imaterial".
Para o professor, formado pela UFJF, o impulso que leva a todo tipo de arte é sempre a vontade de criar. Autodidata, Nádia completa: "toda manifestação vem da inquietação". Dividindo o berço, popular e erudito se complementam. Assim assegura Petrillo, ressaltando que a ingenuidade de um artesão pode simplificar positivamente um pensamento sofisticado. Por outro lado, o artesanato tende a se afastar da repetição em contato com a academia.
Embora o trabalho de Nádia nunca tenha sido feito em série, ela aprendeu a valorizar o processo criativo depois de ingressar na faculdade. E também passou a visitar museus. "Petrillo diz que nosso repertório visual precisa ser amplo." Todos os públicos, segundo os dois artistas, são capazes de apreciar qualquer produção, seja ela da rua ou da galeria. Para Petrillo, o consumo nas artes depende da identificação. "O inconsciente abre uma gaveta, e a pessoa deseja, seja um objeto de decoração ou um quadro."
Futura parceria
Música é estado de espírito. Se ele demonstra natural inconstância, ela também pode variar. Tal afirmativa, lançada pelo maestro Sylvio Gomes, garante espaço na roda para qualquer ritmo. À frente da Orquestra de Jazz do Pró-Música, ele acredita que a definição de uma linha entre erudito e popular é sempre questionável. "Há muito tempo, a mistura é frequente. Querer delimitar é um engano."
Numa noite de segunda, pouco antes do ensaio da orquestra, Gomes recebeu o compositor Flavinho da Juventude. Do encontro, brotou uma possível parceria. "Hoje, vemos muitos maestros que se unem a escolas de samba", comenta Flavinho, com o número de telefone do regente no bolso. Compositor de alguns sambas, Gomes afirma que os críticos mais esclarecidos não hesitam em colocar tudo no mesmo balaio. "Música é arte, diversão e ciência. Não dá para observá-la por um ângulo só", assevera, valorizando a riqueza da cultura popular.
A mãe do maestro era professora do conservatório do Rio. Flavinho aprendeu a ler aos 21 anos. Mesmo com inícios tão distintos, os dois artistas lançaram mão da arte com o intuito de se expressar. "Tive vontade de declarar meu amor platônico por uma menina. Então, fiz minha primeira canção", relembra o sambista. Na visão de Gomes, a música, em todos as suas manifestações, tem a função de subverter a ordem a partir de mundos interiores. Se for bem feita, no morro ou no teatro, atinge seu objetivo e o público. Flavinho concorda. "Gosto de tudo, uma coisa para cada ocasião."
Cortejo entre paredes
"O teatro nasce do cortejo em homenagem a um deus. A folia de reis, portanto, está na raiz das artes cênicas." A constatação do diretor Marcus Amaral é apenas uma das muitas semelhanças entre o ofício tradicional da ribalta e a festa religiosa de dezembro e janeiro. O bate-papo com o presidente da Associação das Folias de Reis e Charolas de Juiz de Fora, André Brasilino, correu sem freios na Casa de Cultura, local de ensaio da peça "A farsa do advogado Pathelin", que estreia no dia 7 de outubro sob direção de Amaral. O mestre de palhaço Wellerson Laudelino também participou do encontro. "Os palhaços representam o exército de Herodes, são o mal, mas um mal alegre", explica ele, ressaltando que na folia também cabe a noção de personagem. "Os foliões são os magos do Oriente", completa Brasilino. Quando vestem a "armadura", os integrantes se transformam. Marcus diz o mesmo: "o ator realmente encarna seu papel".
Sobre a reação do público, os três artistas destacam a imprevisibilidade. Ao longo da viagem de 12 dias, os foliões passam por pessoas que se assustam e por outras que se alegram. Diante da ribalta, a plateia também não segue um padrão. "Mas, nos dois casos, qualquer espectador pode ser fisgado pela emoção e se modificar a partir disso", menciona Marcus, que enfrentou os pais e abandonou o direito para estudar teatro. André e Wellerson, por outro lado, herdaram da família o amor pela folia. "Não aceitei um emprego em Portugal por conta disso", orgulha-se Brasilino, acostumado aos nãos que recebe quando oferece a entrada do cortejo nas casas. Amaral compara: "para ‘Pathelin’, visitamos 23 empresas e só tivemos três respostas positivas de patrocínio".