Jejuns pós-modernos
Privar-se de algo que gosta ao longo de 40 dias faz parte dos ritos adotados por muita gente no período da Quaresma. Dividido entre a Quarta-feira de Cinzas e a Quarta-feira Santa, que antecede o tríduo pascal compreendido entre a Quinta-feira Santa, a Sexta-feira da Paixão e o Sábado de Aleluia (ou da Ressurreição), os cristão buscam, nesta época, evitar elementos tidos como essenciais para sua vida como forma de agradecimento ou de reparação a Deus. Os exemplos são muitos e variam de alimentos a atitudes e sentimentos.
Enquanto muitos cortam da dieta as carnes, outros retiram do cardápio outros prazeres alimentícios ou se privam de hábitos dos quais gosta muito, como usar a tecnologia, por exemplo, em nome de sua fé e amor ao próximo. A estudante Jéssica Fátima Ferreira Souza, 16 anos, cortou o refrigerante para estimular o pai, que sofre de problemas nos rins, a ingerir líquidos mais saudáveis. “Ele precisa tomar bastante líquido, como água ou suco. Já diminuiu bastante a ingestão do refrigerante, mas não parou por completo “, conta. Além da bebida gaseificada, Jéssica também abriu mão do chocolate por se considerar “uma viciada” no alimento. “Meu propósito é acabar de vez com esse vício, mais do que por uma simples dieta”, destaca. “Cortar estas coisas, principalmente o chocolate, é uma mudança mais pessoal do que religiosa. Tenho minha fé, mas não sou muito de ir à igreja, por isso aproveitei a Quaresma para fazer um teste e perceber que o chocolate não é tão importante assim na minha vida”, reflete.
Diferente de Jéssica, há três anos, o estudante Pedro Henrique Landim, 26, pratica a penitência e a enxerga como um convite à introspecção e autocrítica, além de se sentir mais perto de Deus. “Depois do carnaval de 2014, quando enfrentava um momento emocional ruim, decidi praticar a penitência como forma de me aproximar mais de Cristo e renovar o corpo e a alma. Desde então, me privo de refrigerante, carnes bovina e suína e do álcool em toda a Quaresma. Não vejo dificuldade em jejuar 40 dias em prol de algo que acredito ser benéfico física e psicologicamente”, comenta ele. O refrigerante também foi o escolhido pela estudante Laís Oliveira Taxa, 16. “Gosto de fazer a penitência por me sentir mais tranquila e em contato com Deus. Quem segue os ritos católicos entende que não é algo que Deus nos mande fazer, mas algo que sentimos vontade de fazer”, explica.
Este ano, a estudante Luiza Mello, 19, decidiu fazer uma penitência espiritual, buscando reparar erros que interferem em relacionamentos pessoais e com Deus. “Está sendo difícil, pois, normalmente, em uma determinada situação em que eu agiria do meu jeito ‘humano’, eu preciso parar e pensar para agir de modo diferente. É um processo difícil, mas que sei que renderá muitos frutos. A liturgia da Igreja nos propõe a oração, a penitência e a caridade. Dessa forma, a penitência é de grande ajuda espiritual, para evitar o pecado e tudo o que ele induz, e para restabelecer nossa amizade com Deus, já que a Quaresma é o tempo propício para a conversão e a reconciliação”, observa.
Sem usar a internet na Quaresma
Você já se imaginou viver fora das redes sociais? O professor e diácono José Getúlio de Sá Cavalcante, 59, tem conseguido se manter distante dos canais eletrônicos de comunicação. Depois do carnaval, ele deixou de lado sua conta de e-mail, seu perfil no Facebook e o WhatsApp e buscou priorizar a “conversa olho no olho”, deixando o celular apenas para emergências. ” Não tem me feito falta, pois as pessoas conseguem falar comigo de outras maneiras”, observa. Já o atendente paroquial Josinei da Rocha Neto, 27, não conseguiu cumprir a penitência de ficar sem o WhatsApp, voltou ao aplicativo no 18º dia de jejum. “Por morar sozinho e longe da minha família, sinto a necessidade de conversar com as pessoas, e o WhatsApp é o principal meio. Mesmo não indo até o final, percebo que preciso mudar a forma como me relaciono com o aplicativo e, quem sabe, voltar a ficar sem ele no próximo ano.” Josinei diz que fez da situação um momento de reflexão. “Isso mostra como Jesus, apesar de humano, é diferente de nós. Ele jejuou por 40 dias no deserto, e nós, por ele, não conseguimos fazer o mínimo. Escolhi o WhatsApp por ser algo desafiador, pois qualquer alimento que eu deixasse de comer não seria um sacrifício. Sei que não consegui, mas Deus viu o quanto me esforcei.”
Na visão do padre Pierre Maurício de Almeida Cantarem, as diferentes formas de penitência, sobretudo as escolhidas pelos jovens, sinalizam um amadurecimento da fé. “Por muito tempo, a penitência era uma obrigatoriedade. Muitos paravam de comer carne sem entender de fato a motivação, e, às vezes, a carne nem fazia falta para aquela pessoa. Com o tempo, a Igreja Católica foi dando condições aos fieis de compreenderem melhor o significado de penitência, e os jovens, inclusive, têm se abdicado daquilo que gostam por estarem mais participativos e conscientes do valor e da importância que a Igreja tem na vida deles”, explica.
Significado litúrgico
“O jejum é uma forma de você sacrificar o seu corpo para não o entregar somente às coisas materiais e também não permitir que as coisas materiais, mesmo o pão, o alimento, conduzam a sua vida espiritual, que deve ser conduzida por você, pela fé”, observa o arcebispo metropolitano Dom Gil Antônio Moreira. A modernização das penitências, como cortar o acesso à internet, segundo Dom Gil, sinaliza questões levantadas pelo Papa Francisco. “O abuso da internet e desses instrumentos eletrônicos, como o WhatsApp, pode muitas vezes dominar as pessoas. Então, sacrificar isso faz bem à sua vida, faz bem ao seu corpo, à sua mente, faz bem à sua alma”, comenta. O arcebispo, no entanto, destaca que os cristãos nunca devem substituir aqueles preceitos da Igreja, que são o jejum e a abstinência. “Nós devemos acrescentar àquelas penitências estas outras que nós podemos descobrir hoje e sempre”.