Somos instantes
Minha avó está com Alzheimer. Outro dia, fiz um passeio com ela: fomos a uma exposição de arte, ao parque do museu, onde ela frequentou durante muitos anos de sua juventude, e tomamos um cafezinho com bolo ao final da tarde num lugarzinho charmoso e aconchegante. Foram horas de muito carinho e bom papo. Minha avó é falante e alegre, gosta de arte e natureza, adora contar casos e conversar sobre todos os assuntos. Uma delícia estar com ela e seu humor inteligente e mineiro. Naquele mesmo dia à noite, ela não se lembrava de mais nada. Puf! Apagou tudo!
Semanas depois, organizamos um grande almoço de família. Primos, tios, sobrinhos, netos… Quase 80 pessoas reunidas em torno dela e por ela. Minha avó participou de tudo, sorridente e espirituosa, como de costume. Recebeu homenagens, dezenas de beijos e abraços, precisou fazer pose para muitas fotos, e ficamos todos imensamente felizes. Ela também estava feliz e emocionada. No dia seguinte: puf! Quando fiz menção ao almoço, ela me disse: “Mas que almoço? Que encontro?”.
Passaram-se dias, e eu estava na casa dela, vendo seus livros, e me deparei com um de seus preferidos: “O morro dos ventos uivantes”. Tenho nas minhas lembranças de início da adolescência as várias vezes em que minha avó me falou dele. Então, me apressei logo em dizer a ela que queria finalmente ler o livro e, naturalmente, perguntei: “Vó, como é mesmo a história desse livro?”. Ela me olhou por alguns segundos e me disse: “Não sei, Nathália. Sei que eu gostava dele, mas não me lembro de mais nada”.
Ficamos nos olhando, emocionadas e cúmplices. Amei minha avó com toda força naquele instante. À noite, não consegui dormir muito bem, porque fiquei pensando em como seria esquecer todos os livros que eu já havia lido, os lugares onde estive. Pensei em como seria perder tanto: perder minhas memórias! Acho injusto isso. Mas já faz um tempo que entendi que a vida não é justa.
A vida é só um instante. Tudo o que temos é só esse instante. E pela possibilidade de viver cada um desses instantes: o instante do beijo com amor, do abraço saudoso, do olhar de cumplicidade. É pelo instante do encontro que vivemos. Pelo instante da palavra que é dita e que é escutada. Nós mesmos somos isso: somos instantes! Ora uivantes, ora calados. Somos!
*Dedico esse texto às pessoas com Alzheimer, em especial, à minha avó Eni, com gratidão a todos os instantes que temos vivido com amor e coragem.