Nota Preta
Em minha monografia de conclusão do curso de história, pesquisei o que chamei de Nota Preta: a dívida de Juiz de Fora com a herança escravista. Pretendi mostrar que, embora a participação da força de trabalho escrava tenha sido preponderante para o desenvolvimento da cidade, isso estava apagado tanto da história local quanto dos currículos referentes. A dívida, assim, tinha e ainda tem um perfil simbólico e outro econômico.
Do ponto de vista simbólico, repetiu-se aqui a mesma exclusão pensada nacionalmente. O professor Fábio Lucas, no livro “Expressões da identidade brasileira”, acusou a recusa sistemática dos senhores em transferir conhecimento para negros e índios na colônia, que permaneceu pelo Império e República. Formou-se, assim, uma primeira herança negativa ou crédito negro. Nela, a inteligência era atributo exclusivo dos europeus, cabendo aos índios a representação da natureza e, aos negros, a força bruta.
É sabido, mas não falado, que a riqueza produzida em costas negras financiou o surto industrializante da Princesa de Minas. Domingos Giroletti, em seu livro “Industrialização de Juiz de Fora” (1850/1930), anotou que, enquanto houve café, o braço negro trabalhou na lavoura. A partir de 1920, com o esgotamento do solo, a lavoura cafeeira migrou para o Nordeste da Zona da Mata, e a população negra foi empurrada para os morros ou marginalizada na periferia. Desde então, a industrialização foi definhando, e a cidade ganhou perfil de serviços.
A população negra migrou para a retaguarda, na cozinha, faxina, no esforço pesado, as DCE’surbanas, exatamente como o discurso racializado, que fundou o pensamento sobre o país, preconizou no século XIX. Como diz o refrão, desde então, perfazem “a carne mais barata do mercado”. Carlos Hasenbalg (UFRJ), cruzando os dados do Censo/Pnad 1976, anotou estatisticamente esse “Lugar de negro”, título de sua obra em parceria com Lélia Gonzalez.
A alegação de que no Quilombo dos Palmares tinha escravos é meramente protelatória. Assim como aquela que acusa os africanos de vender seus próprios irmãos. Quem afirma isso, e é verdadeiro, desconhece o papel indutor do sistema mercantilista europeu, que, além de provocar desequilíbrio no continente, armou principalmente as tribos litorâneas para que apresassem seus adversários. No livro “Em costas negras”, Manolo Florentino, analisando a produção de escravos na África, anotou que em todo lugar em que as técnicas de produção atingiram um determinado grau de desenvolvimento, ocorreu trabalho escravo. Em 2008, o primeiro-ministro inglês, David Cameron, pediu desculpas à África.
Em “Passagens da antiguidade ao Feudalismo”, Perry Anderson informou que o esplendor grego do século V foi sustentado pela escravaria, metade da população de Atenas. Roma produzia seus escravos nas colônias. No século XIV, por exemplo, as cidades europeias do mediterrâneo andavam apavoradas com as incursões árabes que apresaram mais de um milhão de seus habitantes para o tráfico. Aqui, a Atenas de Minas desabrochou no dezenove escravocrata.
Palmares não era uma exceção, era a regra, visto que o desenvolvimento do quilombo demandou organização militar para a defesa dos ataques permanentes. Aconteceu em muitos quilombos, por razões de defesa e pelo fato de que era o único regime de trabalho à época. Caso é que o regime escravo, com o tráfico, gerou a riqueza que permitiu a acumulação que desenvolveu todo o país, mas deixou de fora os donos do motor gerador. O feriado em homenagem a Zumbi inicia, aqui, o reconhecimento simbólico dessa contribuição.