Sobre trote e outras violências


Por RODRIGO GALDINO

02/10/2014 às 06h00

Moro em Juiz de Fora há pelo menos cinco anos. Sempre achei esquisitíssima essa ideia de ver alunos que acabaram de ingressar na UFJF pedindo dinheiro nas ruas. Todos muito sujos, maltrapilhos, alguns até bêbados – muitos muito bêbados, na verdade. Não sou conservador. Às vezes, sou até liberal demais. Mas nossa cidadania exige que tenhamos compromisso com direitos. E humilhar pessoas, atribuindo tal ato a um mero “rito de passagem”, como justificam alguns, não me parece razoável.

Lembro desse meu “rito”. Saí de uma cidade pequena, de quase três mil habitantes, fiz três vestibulares para a UFJF e passei na quarta tentativa, quando a instituição adotou o sistema de cotas. Aí eu fui estudar na UFJF – eu, franzino, negro e pobre, entrei para o sonhado curso na Facom. E na entrada fui “convidado” a participar do trote. Me recusei. Ninguém me forçou. Mas o que presenciei no anfiteatro da faculdade, em determinado dia em que, a convite de amigos, fui assistir ao então chamado “show de calouros”, me fez crer que o trote – da forma como vem sendo praticado – é selvageria. É desumano, para dizer o mínimo.

O tal “show de calouros” – um trote sofisticado, com microfone e tudo – não existe mais, óbvio. De uns tempos para cá, a própria UFJF proíbe o trote em todos os seus espaços. Mas tenho comigo as lembranças daquele “show” que vi, dentro da Facom, numa noite dos idos 2006. Humilhações mútuas, desrespeitos a orientações sexuais, comportamentos machistas e homofóbicos e até atos meio obscenos… (Repito: não sou conservador, mas lido com um limite claro entre o aceitável e o inaceitável). Saí nos primeiros minutos, não tive estômago para assistir.

Também não tenho paciência para assistir a tais trotes pelas ruas. São esquisitos? São. Engraçados: em algum momento, podem até ser. Mas mais do que isso: esses trotes, da forma como acontecem (ou aconteciam, já que a lei recém-sancionada tende a coibir tais atitudes), ajudam a comprovar o quanto nossa sociedade é violenta. Sim, violenta! Afinal, essa necessidade de o “veterano” mostrar superioridade ao “calouro” está baseada numa suposta hierarquia em que quem manda é o mais forte. O mais forte, o branco, o heterossexual, o “macho”, o rico.

Sei que não estamos muito acostumados com proibições. Algo como: é proibido proibir. E acho estranho, tão esquisito quanto os trotes, que haja alguns argumentos que retiram dos vereadores a legitimidade de criar e aprovar tal lei. Ora, bolas: os políticos estão aí para isso. Colocar (ou tentar colocar) ordem nesse nosso caos, a partir de normas, muitas vezes. Claro, agora é preciso saber se a lei vai “pegar”, não é? Mas isso é outra história, aguardemos. Por enquanto, acho que vale a pena refletirmos sobre violência. Pois, quando aceitamos determinadas atitudes, estamos às vezes banalizando coisas muito sérias.

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