PJF tem interesse em aderir a monitoramento por geolocalizaĆ§Ć£o
Sistema criado por operadoras de telefonia pode servir para MunicĆpio acompanhar isolamento social de cidadĆ£os
A Prefeitura de Juiz de Fora (PJF) tem interesse em aderir Ć plataforma de monitoramento do isolamento social a partir de dados de geolocalizaĆ§Ć£o dos usuĆ”rios de serviƧos de telefonia mĆ³vel. A intenĆ§Ć£o do Executivo foi confirmada Ć Tribuna pela Secretaria de Desenvolvimento EconĆ“mico, Turismo e AgropecuĆ”ria (Sedeta). Criado pelas operadoras Claro, Oi, Tim e Vivo, a plataforma estĆ” no ar desde a Ćŗltima segunda-feira (20). O serviƧo fora oferecido ao MinistĆ©rio da CiĆŖncia, Tecnologia, InovaƧƵes e ComunicaĆ§Ć£o, mas recusado pelo Governo federal. As operadoras de telefonia mĆ³vel entĆ£o ofereceram a utilizaĆ§Ć£o da plataforma a estados e municĆpios.
Conforme o Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de ServiƧo MĆ³vel Celular e Pessoal (Sinditelebrasil), os governadores e prefeitos terĆ£o acesso a mapas de calor dos usuĆ”rios organizados conforme dados estatĆsticos de base agregada e anĆ“nima. No entanto, especialistas apontam inseguranƧa jurĆdica na utilizaĆ§Ć£o de dados de geolocalizaĆ§Ć£o, sobretudo em razĆ£o de a Lei Geral de ProteĆ§Ć£o de Dados – Lei 13.709/2018 – nĆ£o estar ainda em vigor.
Como informado, em nota, pela Sedeta, Ć Tribuna, a plataforma de geolocalizaĆ§Ć£o poderĆ” ajudar a Prefeitura de Juiz de Fora no controle epidemiolĆ³gico do novo coronavĆrus, nas associaƧƵes e correlaƧƵes entre os casos, e, por fim, na ocupaĆ§Ć£o de hospitais baseado no aumento ou na diminuiĆ§Ć£o da circulaĆ§Ć£o das pessoas. āContudo, a Prefeitura aguarda que este site entre no ar para entender os termos de construĆ§Ć£o deste termo de cooperaĆ§Ć£o tĆ©cnica com o MunicĆpio.ā
De acordo com o Sinditelebrasil, a plataforma jĆ” estĆ” pronta para a adesĆ£o. Para ter acesso, as autoridades governamentais deverĆ£o entrar em contato com uma das operadoras para manifestar a intenĆ§Ć£o de adesĆ£o Ć plataforma. ApĆ³s a manifestaĆ§Ć£o, os entes pĆŗblicos e as operadoras firmarĆ£o acordo de cooperaĆ§Ć£o tĆ©cnica e assinarĆ£o termos de responsabilidade para a utilizaĆ§Ć£o da plataforma. Os gestores terĆ£o acesso Ć plataforma em atĆ© 48 horas depois de acordadas as adesƵes. O sistema estĆ” Ć disposiĆ§Ć£o do prĆ³prio Governo federal, dos Governos estaduais, das capitais de estados e de municĆpios com populaĆ§Ć£o superior a 500 mil habitantes.
EstatĆsticas serĆ£o usadas de forma agregada e anĆ“nima
Questionado pela Tribuna a respeito da exposiĆ§Ć£o de privacidade dos usuĆ”rios, o Sinditelebrasil explica, em nota, que as estatĆsticas a serem utilizadas para a composiĆ§Ć£o dos mapas de calor dos cidadĆ£os serĆ£o organizadas de forma agregada e anĆ“nima, ou seja, as pessoas nĆ£o serĆ£o identificadas, mas, sim, a quantidade de linhas por antena das operadoras de telefonia. āEm nenhum momento serĆ£o coletados dados de celulares nem serĆ£o gerados dados individuaisā, pontua. O Sinditelebrasil ainda pondera que āos dados que estarĆ£o nos mapas de calor (…) visam exclusivamente o combate Ć Covid-19 e seguem estritamente a legislaĆ§Ć£o aplicĆ”vel, inclusive a Lei Geral de ProteĆ§Ć£o de Dados Pessoais (LGPD)ā.
Apesar de sancionada ainda em agosto de 2018 pelo ex-presidente Michel Temer (MDB), a LGPD ainda nĆ£o estĆ” em vigor – entraria apenas em 16 de agosto prĆ³ximo. A Lei 13.709/2018 regulamenta, especificamente, o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por jurĆdica de direito pĆŗblico ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade dos cidadĆ£os. Em 3 de abril Ćŗltimo, o Senado adiou a entrada em vigor da LGPD para agosto de 2021 somente. A decisĆ£o, agora, estĆ” nas mĆ£os da CĆ¢mara dos Deputados.
A prorrogaĆ§Ć£o da entrada em vigĆŖncia da LGPD, somada Ć ausĆŖncia da constituiĆ§Ć£o da Autoridade Nacional de ProteĆ§Ć£o de Dados (ANPD) – agĆŖncia que regulamentaria a aplicaĆ§Ć£o da lei -, Ć© apontada por especialistas em proteĆ§Ć£o de dados como ponto de inseguranƧa jurĆdica para a utilizaĆ§Ć£o de dados de geolocalizaĆ§Ć£o para monitorar as medidas de isolamento social adotadas por municĆpios e estados. Dentre outras medidas, por exemplo, a LGPD trataria sobre a utilizaĆ§Ć£o de dados de forma emergencial com uma finalidade muito bem definida, como Ć© o caso da pandemia do novo coronavĆrus. Dada a inseguranƧa jurĆdica, tanto as operadoras de telefonia mĆ³vel quanto os entes pĆŗblicos estĆ£o sujeitos Ć eventual judicializaĆ§Ć£o da utilizaĆ§Ć£o destes dados.
AusĆŖncia de Ć³rgĆ£o regulador traz inseguranƧa
Conforme SĆ©rgio Negri, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), ao contrĆ”rio da UniĆ£o Europeia, por exemplo, onde hĆ” um aparato normativo que assegura a constitucionalidade do tratamento de dados, a ausĆŖncia da implementaĆ§Ć£o da LGPD traz inseguranƧa Ć utilizaĆ§Ć£o de dados no Brasil. āNa UniĆ£o Europeia, agĆŖncias e autoridades que trabalham com a proteĆ§Ć£o de dados jĆ” se anteciparam manifestando que a utilizaĆ§Ć£o de dados Ć© totalmente constitucional e nĆ£o fere a legislaĆ§Ć£o. As autoridades e agĆŖncias acabam, na verdade, se antecipando Ć regulaĆ§Ć£o para, por exemplo, orientar que a utilizaĆ§Ć£o seja feita de forma transparente, seguindo determinados parĆ¢metros, e, tambĆ©m, em um tempo delimitado para que nĆ£o viole nenhum direito.ā
A determinaĆ§Ć£o de princĆpios e parĆ¢metros para o tratamento de dados no Brasil seria responsabilidade da Autoridade Nacional de ProteĆ§Ć£o de Dados. De acordo com Negri, a ausĆŖncia do Ć³rgĆ£o Ć© um fator de inseguranƧa. āEntĆ£o, por exemplo, podemos ter um cenĆ”rio de judicializaĆ§Ć£o. O Brasil acaba, neste momento, vivendo um contexto de inseguranƧa jurĆdica, embora haja a possibilidade de defender (a utilizaĆ§Ć£o dos dados) atĆ© via ConstituiĆ§Ć£o. PorĆ©m, olha sĆ³ a dificuldade para isso. Teria que demonstrar que a prevalĆŖncia do direito Ć saĆŗde nessa situaĆ§Ć£o em especial justificaria a utilizaĆ§Ć£o.ā O professor da Faculdade de Direito destaca que a utilizaĆ§Ć£o de dados de geolocalizaĆ§Ć£o jĆ” acontece em outros paĆses. Na ItĆ”lia, por exemplo, hĆ” uma lei de emergĆŖncia de contact tracing, ou seja, que acompanha, por meio de mapa, se as pessoas contaminadas estĆ£o se encontrando com outras pessoas.ā
Bem como Negri, o professor da Doctum ClĆ”udio Roberto Santos, advogado do escritĆ³rio HG Advocacia, ressalta que a ausĆŖncia da Autoridade Nacional prejudica eventual regulamentaĆ§Ć£o emergencial para a utilizaĆ§Ć£o de dados. āA LGPD entrar em vigor seria bom por um lado, porque tem uma sĆ©rie de garantias que nĆ£o dependem da Autoridade Nacional, que jĆ” podem ser aplicadas de forma imediata, mas, por outro lado, hĆ” outros pontos que dependem de regulamentaĆ§Ć£o da Autoridade Nacional. (…) A Autoridade Nacional jĆ” deveria ter sido constituĆda, porque ela foi criada pela Lei, mas o Governo nĆ£o a organizou, nĆ£o acabou de formar o conselho, a diretoria, nĆ£o falou nem a respeito de onde ela vai estabelecer, coisas prĆ”ticas etc.ā
De acordo com ClĆ”udio, como hĆ” um vĆ”cuo oriundo da ausĆŖncia de uma agĆŖncia reguladora no Brasil, entidades e institutos tĆŖm buscado ocupĆ”-lo para estabelecer parĆ¢metros e princĆpios de tratamento de dados, como o Data Privacy Brasil āHĆ” um relatĆ³rio que foi publicado na semana passada pelo Data Privacy Brasil. O relatĆ³rio Ć© destinado especialmente para os entes pĆŗblicos sobre o uso de medidas que envolvam algum tipo de coleta de dados pessoais para para o combate Ć Covid-19 e quais sĆ£o os parĆ¢metros para a sua utilizaĆ§Ć£o e para a adoĆ§Ć£o de medidas. (…) O que o Data Privacy fez seria algo de competĆŖncia da Autoridade Nacional, que Ć© exatamente algo que estĆ” acontecendo fora do Brasil. Todas as autoridades nacionais da UniĆ£o Europeia se manifestaram, da Irlanda, da ItĆ”lia, da FranƧa, da Espanha, da Inglaterra etc.. Compete a elas dizer.ā
DiferenƧa entre uso de dados pessoais e geolocalizaĆ§Ć£o
HĆ” uma diferenƧa tĆ©cnica entre a utilizaĆ§Ć£o de dados pessoais de usuĆ”rios de telefonia mĆ³vel e dados de geolocalizaĆ§Ć£o – este Ćŗltimo previsto na plataforma que a Prefeitura de Juiz de Fora tem a intenĆ§Ć£o de aderir. Os especialistas consideram o tratamento de dados pessoais mais invasivo e incisivo que o de geolocalizaĆ§Ć£o. A prĆ”tica de monitoramento por geolocalizaĆ§Ć£o segue normalmente base de dados agregadas e anĆ“nimas, ou seja, os dados pessoais dos usuĆ”rios, em tese, seriam anĆ“nimos. No entanto, institutos de proteĆ§Ć£o de dados questionam se, de fato, a anonimizaĆ§Ć£o destes dados Ć© praticada por empresas. Em suma, todos apontam para a necessidade de transparĆŖncia ao tratar os dados, tanto pessoais quanto de geolocalizaĆ§Ć£o.
Em caso de utilizaĆ§Ć£o de dados pessoais, ClĆ”udio aponta trĆŖs princĆpios necessĆ”rios a serem aplicados: necessidade, finalidade e transparĆŖncia ao tratĆ”-los. āO Marco Civil da Internet – Lei 12.695/2014 – jĆ” estabelece, no Brasil, que aquele responsĆ”vel em tratar os dados pessoais, seja os coletando ou os transferindo, precisa deixar muito claro quais os dados que estĆ£o sendo colocados, indicar qual a finalidade e explicar qual a necessidade da coleta de todas as informaƧƵes. Seriam trĆŖs parĆ¢metros bĆ”sicos para a gente pensar no uso de tratamento de dados pessoais.ā Por outro lado, conforme o advogado, caso a base de dados utilizada seja anonimizada, nĆ£o hĆ” problemas de violaĆ§Ć£o. āAs operadoras estĆ£o garantindo que a base Ć© anonimizada. Se a base for anonimizada, perfeito. Ć uma medida menos invasiva, justamente porque nĆ£o identifica cada uma das pessoas. Ć muito diferente, por exemplo, das medidas que foram tomadas na Coreia do Sul, em Singapura e na China, onde sĆ£o bem mais invasivas.ā
A tĆtulo de exemplo, ClĆ”udio questiona a Medida ProvisĆ³ria 954/2020, e que libera o compartilhamento de dados de empresas de telecomunicaĆ§Ć£o com o Instituto Brasileiro de Geografia e EstatĆstica durante a pandemia de Covid-19. āFalta muita transparĆŖncia nestas medidas em como serĆ£o atestadas. Quando falo em transparĆŖncia, estou me referindo a um princĆpio de proteĆ§Ć£o, coleta e tratamento de dados pessoais no Brasil, que jĆ” existe independentemente da LGPD. (…) O princĆpio de transparĆŖncia a que me refiro seria, na prĆ”tica, mais ou menos o seguinte: quando o Governo federal fala em āfins estatĆsticosā Ć© muito genĆ©rico. Isso nĆ£o fica claro. O que seria āfins estatĆsticosā? Como vocĆŖ vai usar esse dado? Isso nĆ£o ficou claro na MP nem em uma nota tĆ©cnica que o IBGE publicou. NĆ£o atendeu aos requisitos que a AgĆŖncia Nacional de TelecomunicaƧƵes expĆ“s.ā Atendendo a liminar da Ordem dos Advogados do Brasil e da oposiĆ§Ć£o, a ministra do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber suspendeu, na Ćŗltima sexta (24), os efeitos da MP 954/2020.
Negri defende que os entes pĆŗblicos que pretendem utilizar dados apresentem aos usuĆ”rios um plano delineando quais sĆ£o os riscos iminentes. āO Governo tem que apresentar um plano demonstrando quais sĆ£o os riscos da utilizaĆ§Ć£o desses dados, como eles serĆ£o trabalhados, se vai utilizar somente dados agregados e como serĆ” feita a anonimizaĆ§Ć£o caso aconteƧa. E o que Ć© muito importante: vincular a utilizaĆ§Ć£o a uma finalidade determinada e tambĆ©m estabelecer quanto tempo vai durar. Os cidadĆ£os vĆ£o saber para qual fim estĆ” sendo feito e qual o perĆodo, porque Ć© inegĆ”vel que a utilizaĆ§Ć£o seja justificada em uma situaĆ§Ć£o de emergĆŖncia. E sempre vai existir o risco da utilizaĆ§Ć£o indevida posteriormente. JĆ” virou um clichĆŖ, mas todo mundo sabe que o dado Ć© o novo petrĆ³leo. Ele tem um valor imenso tanto para as empresas quanto para o Governo.ā
Legado
AlĆ©m dos princĆpios de necessidade, aplicaĆ§Ć£o e transparĆŖncia, outro a ser estabelecido e que, conforme ClĆ”udio, preocupa entidades e institutos de defesa dos direitos humanos na esfera digital Ć© o que serĆ” feito com os dados passada a pandemia de Covid-19. āPode ser que o Governo venha com o subterfĆŗgio de combate Ć pandemia, que Ć© extremamente legĆtimo – o uso de todos os nossos recursos para combater a pandemia Ć© legĆtimo -, mas todos se preocupam com o legado. O que vai ser feito depois? O relatĆ³rio do Data Privacy Brasil aponta que um dos requisitos a ser observado e ser estabelecido desde o inĆcio do uso da tecnologia Ć© em relaĆ§Ć£o ao descarte dos dados. AtĆ© quando o Governo vai ficar com os dados, ou seja, quando acabar a pandemia e nĆ£o existir mais o risco de contaminaĆ§Ć£o, os dados devem ser deletados. A preocupaĆ§Ć£o Ć© que isso se prolongue e passemos a ter um sistema de vigilĆ¢ncia, como, por exemplo, na China, onde hĆ” um sistema de vigilĆ¢ncia muito bem organizado.ā