‘Estado laico não é Estado ateu’
Apesar de sempre presentes, os questionamentos das relações estabelecidas entre o Estado e a religião se intensificaram após a onda de indignação que levou milhões de pessoas às ruas do país a partir de junho. Entre pedidos de melhorias em setores como transporte e saúde, os manifestantes descarregaram sua artilharia contra bandeiras parlamentares alinhadas com preceitos religiosos, como o projeto do deputado federal João Campos (PSDB), que ficou conhecido como "cura gay" e pretendia permitir tratamento psicológico para homossexuais. Após pressões populares, a proposta acabou arquivada no início do mês passado. Na última quinta-feira, a decisão da presidente Dilma Roussef de sancionar integralmente legislação que obriga a rede SUS a prestar atendimento às vítimas de violência sexual – permitindo a prescrição da "pílula do dia seguinte" – feriu os brios de parte da bancada evangélica do Congresso, incluindo o deputado Marco Feliciano (PSC), que chegou a afirmar que o Palácio do Planalto estaria mal intencionado. Até mesmo a visita do Papa Francisco ao Brasil, no mês passado, causou polêmica e foi alvo de manifestações contrárias à interferência de preceitos religiosos no Estado brasileiro, tema que entrou de vez na pauta da discussão política no cenário nacional.
Autor do livro "O Estado laico & a liberdade religiosa", o desembargador do Tribunal de Justiça do Pará, Milton Augusto de Brito Nobre, define o Estado laico como aquele que adota postura neutra frente a todas as confissões religiosas, mas lembra que o mesmo não é sinônimo de Estado ateu ou antirreligioso. "O poder estatal não interfere na autoridade dos dirigentes religiosos e nem estes, na autoridade do Governo do estado, sendo garantida assim tanto a plena liberdade religiosa quanto a plena liberdade política dos cidadãos. A neutralidade religiosa do Estado não pode significar irreligiosidade ou hostilidade estatal às religiões, pois isso implica em maltratar a liberdade individual de crença ou descrença. Estado laico, é bom frisar, não é sinônimo de Estado ateu ou antirreligioso e sim de Estado leigo." Entendimento similar é defendido pelo jurista e doutor em direito pela Universidade Mackenzie, Ives Gandra da Silva Martins. "O Estado laico não é aquele em que somente os que não acreditam em Deus têm o direito de dirigi-lo. Se assim fosse, seria a brutal ditadura da minoria. Todos os cidadãos que acreditam em Deus enquanto cidadãos têm o direito de expor sua opinião e defender suas posições, prevalecendo, numa democracia, a opinião da maioria."
Professor do Departamento de Direito Público e Material da UFJF Frederico Riani usa a liberdade religiosa definida pela Constituição para defender a laicidade como ferramenta para garantir a isonomia do Estado. "Esse pluralismo, marca da cultura brasileira e direito constitucionalmente consagrado em nosso Estado, é incompatível com a adoção pelo Estado de alguma religião. Em uma república plural, o Estado precisa ser de todos e não vinculado a uma ou algumas religiões. Caso contrário, teríamos uma grande contradição política e jurídica: o Estado é de todos, mas trabalha para um grupo de cidadãos."
Influência
Por outro lado, Frederico Riani ressalta que a Constituição Federal também se referenda na preservação da diversidade cultural e lembra a influência da Igreja e do Cristianismo no mundo ocidental. "O fato, por exemplo, de se ter um feriado nacional ‘religioso’ não se presta para impor a todos os brasileiros uma determinada profissão de fé. Muitos utilizam o feriado para a diversão e o lazer e não para ir à basílica. Ainda que seja reprovável, por exemplo, crucifixos em salas de audiências públicas e feriados santos em um Estado laico, isto tudo faz parte da cultura brasileira, que, a partir da indignação popular, está sendo gradativamente alterada. Muito mais grave, a meu ver, são as fotos dos ocupantes de órgãos públicos nas repartições públicas. Fotos de presidente, de governador, de prefeitos e tantas outras autoridades violam frontalmente o princípio da impessoalidade previsto pela Constituição."
Busca por representatividade é legítima
Apesar da definição de laicidade do Estado brasileiro, os especialistas defendem como legítima a possibilidade de grupos religiosos se organizarem para garantir representatividade nos poderes Executivo e Legislativo das três esferas públicas, desde que não violem direitos constitucionais de minorias ou de outros credos. "Qualquer grupo, religioso ou de qualquer outra espécie, tem todo o direito de organizar-se politicamente para defender ideias que lhe são caras. Cabe ao Estado, em todas as suas dimensões executivas, legislativas e judiciárias, assegurar que os direitos de todos os demais grupos sejam preservados", avalia o cientista político da UFJF Paulo Roberto Figueira Leal. Por outro lado, Frederico Riani alerta a sociedade para possíveis abusos. "O que se tem visto no Congresso Nacional, noticiado pela mídia, é a tentativa de líderes religiosos imporem a sua ‘verdade’ a toda a sociedade, utilizando-se do Estado para tentar estabelecer suas crenças como sendo as únicas permitidas. Isto é um ato autoritário, ilegítimo e violador dos princípios constitucionais do pluralismo político, ideológico e religioso."
Tensão
Professor do programa de pós-graduação em Ciência da Religião da UFJF e pastor emérito da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil, Zwinglio Mota Dias, lembra que, historicamente, a relação é marcada por tensões de todos os tipos. "As bancadas de grupos religiosos no Congresso têm o direito de defender suas visões de sociedade no debate democrático. Porém, qualquer atitude de intolerância e recusa ao diálogo será demonstração inequívoca de obscurantismo e falta de compromisso democrático."
Entretanto, o teólogo lembra que a convivência entre Estado e religião é inevitável. "Os cidadãos de um Estado são também os membros das diferentes instituições religiosas. De um modo ou de outro, a dimensão da religiosidade afeta a consolidação e o funcionamento de um Estado, seja laico ou teocrático. Essa separação é um avanço civilizatório. Escolha religiosa é decisão privada, que não deve ser combatida nem incentivada pelo Estado."
Apesar de características aparentemente indissociáveis, Paulo Roberto reforça a importância de se delinear com clareza as fronteiras entre Estado e religião. "Essa separação é um avanço civilizatório. Escolha religiosa é decisão privada, que não deve ser combatida nem incentivada pelo Estado."
Excessos são vistos como atos de intolerância
As vozes surgidas nas ruas a partir das manifestações iniciadas em junho reiteraram, invariavelmente, a laicidade do Estado brasileiro em defesa dos direitos humanos. Porém, casos isolados chamaram a atenção pelo desrespeito a símbolos ligados às diversas culturas religiosas. Exemplos não são poucos. No final de junho, quando um grupo ocupou o plenário da Câmara Municipal de Juiz de Fora, um manifestante rasgou uma Bíblia que estava no plenário. Houve ainda tentativa, sem sucesso, de retirar um crucifixo afixado na parede. Há pouco mais de uma semana, na Marcha das Vadias, no Rio de Janeiro, mascarados simularam relações sexuais com crucifixos e imagens da liturgia católica, que foram despedaçadas. Durante o protesto, houve hostilidades contra peregrinos que participavam da Jornada Mundial da Juventude.
"Foi um ato revelador de intolerância gratuita e que, certamente, nada contribui para a paz social. A sociedade precisa de bons exemplos de compreensão mútua, respeito aos valores de alguns dos nossos semelhantes, mesmo quando signifiquem desvalor para outros ou para nós. A violência, por qualquer forma que se externe, é sempre reprovável. A destruição, ainda que figurada, nunca pode construir", avalia o desembargador Milton Augusto de Brito Nobre. "Contudo, no caso, não creio que tenha tipificado infração penal." Para o jurista Ives Gandra da Silva Martins, tais atos são classificados como demonstração de imaturidade. "Tanto é assim que eram mil ‘vadias’ entre três milhões de católicos. A verdadeira democracia conhece apenas a força do argumento e não o argumento da força."
O professor Frederico Riani destaca a necessidade de se coibir excessos de ambas as partes. "Da mesma forma que há violação, pelas bancadas religiosas e pelos líderes religiosos sectários, dos valores constitucionais antes referidos, as manifestações coletivas e sociais violentas contra as religiões são violadoras destes mesmos valores. Ainda que o culto da religiosidade no espaço público seja contra o princípio do Estado laico, há instrumentos jurídicos adequados para se buscar o respeito à Constituição. E há também meios políticos adequados e não violentos para se deliberar sobre as ações do Estado." Já o teólogo Zwinglio Mota Dias prefere minimizar manifestações mais radicais. "Para mim, significam apenas expressões de cidadãos raivosos e sem educação. Não é por aí que se protesta."