Pai e treinador de Bia Ferreira, ouro no Pan, Sergipe conta trajetória da família no boxe
Antes acompanhado por Bia, treinador baiano de 50 anos treina e segue a filha campeã pan-americana com o sonho olímpico
Atleta, pai e treinador, Sergipe vive ciclos no boxe. Antes seguido pela filha, Beatriz Ferreira, nos desafios em ringues de todo o mundo, hoje basta ligar a televisão para que o seu coração acelere. Primeira boxeadora a conquistar o ouro pan-americano para o Brasil, Bia, 26, baiana radicada em Juiz de Fora, já acumula 22 anos de envolvimento no esporte. Acostumada a seguir o pai em seus treinos e lutas desde pequena, hoje é ela que é acompanhada ao longo de suas conquistas.
“Mesmo longe a gente conversa muito e passa as estratégias da luta. Quando estou no ringue, lembro das coisas que ele falou e de tudo que treinei, procurando soluções, e sempre dá certo. Quando ganho, é felicidade. Eu sei que ele chorou”, conta Bia. Ex-treinador do atleta Pedro Lima, ouro em 2007, e da filha, ouro há uma semana, o baiano apelidado de Sergipe, quase não atende ao nome da certidão de nascimento, Raimundo Oliveira, 50 anos. Bicampeão pan-americano como treinador, que hoje se emociona com as realizações da mais velha de três filhos, ele começou sua história em Salvador, sua terra natal e também a do boxe.
Tendo o esposo falecido muito cedo, a mãe de Sergipe não tinha condições de sustentar os vários filhos. O pequeno Raimundo foi criado pelos vizinhos Edvaldo (Branco) e Dona Conce, pais de mais dois meninos. Nesse contexto Sergipe foi criado e apresentado ao esporte que se tornaria sua profissão. “Nosso outro vizinho, o Silva, treinava boxe e construiu no quintal um saco de pancadas com saco de açúcar, enchimento de colchão e palha de bananeira, e prendia no pé de manga. Comecei a treinar com ele com 12 ou 13 anos. Me orientava nas posições e viu que eu levava jeito, mas não podia me ensinar. Queria me levar para a academia, mas eu não tinha como pagar, então ele contou que tinha surgido um campeonato e o professor pediu para convidar atletas para uma seletiva. Lá o pessoal era novo como eu. Depois de três meses treinando, participei do campeonato de estreante e arrebentei”, conta.
O boxeador chegou a acumular, ao longo da carreira, o título de tricampeão baiano e duas vezes campeão brasileiro, uma no peso galo, em 1999, e outra no peso super galo, em 2002. Além de muitas lutas no amador, Sergipe contabiliza 45 subidas ao ringue como profissional, sendo 42 vitórias e três derrotas. Um momento essencial na sua carreira foram os cinco anos em que atuou como sparring do tetracampeão mundial Popó, ídolo nacional.
“A gente já treinava junto em Salvador, na academia Champion, e quando ele se destacou, conseguiu um empresário e fez carreira até chegar ao título mundial. Através dele a gente também evoluiu, porque não existe um campeão sem uma equipe. Com isso, fui me destacando no profissional e fiz uma luta internacional, na Argentina”. Depois que a equipe de Popó se desfez, Sergipe foi convidado por um treinador a trabalhar em Juiz de Fora e, com o tempo, por aqui ficou, ao perceber uma demanda por treinadores na modalidade. Há cerca de 14 anos, pai e filha se estabeleceram na cidade mineira. Na época, Beatriz Ferreira tinha apenas 12 anos e muitas lutas pela frente.
Criador de campeões
Como treinador, Sergipe foi responsável por iniciar Pedro Lima ao boxe quando o atleta ainda era criança, com cerca de dez anos, como relembra o treinador. “Fiz a base dele e o levei para a Champion, onde começou a lutar e ter experiência, e então entrou para a Seleção Brasileira. Ele treinava comigo na garagem onde Bia começou, em Nova Brasília (bairro de Salvador). Quando aconteceu o Pan-Americano no Rio, em 2007, ele levou a medalha de ouro”, conta orgulhoso. Na época, Pedro Lima findara jejum de 44 anos sem ouro nos ringues para o Brasil e iniciou outro jejum de 12 anos, novamente quebrado por uma cria de Sergipe: Beatriz Ferreira.
Olhando para trás, Sergipe lembra de sua persistência e de tudo aquilo que o esporte o proporcionou, mas lamenta não ter ido ainda mais longe com seus sonhos. “Eu acho que Deus dá um dom para cada um e esse (o boxe) foi o dom que recebi. Quando eu via o Silva lutar lá no fundo do quintal, meus olhos já brilhavam. Eu fazia aquilo com amor e sempre fui muito dedicado, nunca achava que estava bom o suficiente. Eu treinava na academia, chegava em casa, almoçava e descansava um pouquinho, antes de ir treinar de novo. E até hoje eu durmo e acordo com o boxe. Mas que pena que não tive a oportunidade que hoje a Bia está tendo”, diz o lutador que não compete mais.
Pai dentro e fora dos ringues
Sergipe sempre sonhou em ter um filho que herdasse sua paixão pelo boxe. “Desde que ela era pequena e eu treinava em uma equipe grande da Champion, vendo outras boxeadoras, eu sabia que Bia seria um talento do boxe”, destaca o pai que viu a filha subir ao ringue 81 vezes. “Me sinto muito orgulhoso, porque além de ser um trabalho que eu fiz, eu tinha esperança dela conseguir tudo que ela está conquistando. E vai conquistar muito mais, porque a tendência dela é evoluir. Além de ser nova, está pegando muita experiência e começando a receber apoios.”
O pai, porém, já não pode mais acompanhar a filha como antes, depois que ela foi convocada para representar a Seleção Brasileira e passou a ter treinamento e lutas longe de casa. Controlar o coração de pai a quilômetros de distância, não tem sido tarefa fácil. “Eu prefiro mil vezes entrar no ringue e lutar do que vê-la lutar. Sei que os técnicos da Seleção são ótimos, mas me sinto bem quando estou perto, porque é a minha cria. Pelo olhar ela já sabe se estou gostando ou não do rumo da luta. Se estou lá, eu sinto que a mão dela está baixa, que ela está movimentando pouco o tronco e tomando golpe bobo”, conta Sergipe, que está sempre estudando adversárias e técnicas para ajudar a filha em seus treinos.
Sem saber como é não ter um pai treinador, Beatriz afirma que a rotina é de “cobrança e exigência até maior pela liberdade de ele ser meu pai. Acho que é bom ter alguém que incentiva e ao mesmo tempo é rígido, dando educação e mostrando o caminho certo”, comenta. A maior referência que recebeu do pai até hoje foi justamente a paixão que os dois compartilham desde que ela tinha 4 anos. “Amo ser atleta, viajar e viver o momento em que estou agora. E foi graças a ele, vendo seu amor pela luta, que me fez me apaixonar.”
Se antes era Beatriz que subia aos ringues para ficar ao lado pai atleta na hora do resultado das lutas, hoje é Sergipe que a acompanha diante da TV, torcendo e simulando golpes, enquanto vê a filha conquistar, por exemplo, o ouro no Pan-Americano. Agora o sonho dele é ver uma medalha olímpica em Tóquio 2020. “Todas as conquistas fazem parte e têm que agarrar, mas algumas ficam para a história”, diz, com os olhos cheios d’água.