De geração em geração: comércios de Juiz de Fora atravessam décadas e marcam a história da cidade
Tribuna ouviu empreendimentos tradicionais como Procopão, Banca Pioneira, Mexicana e Drogaria Silva que se reinventaram para acompanhar as transformações do município
É raro um empreendimento sobreviver durante décadas. No Brasil, cerca de seis a cada dez empresas não conseguem passar dos primeiros cinco anos de atuação, de acordo com dados da pesquisa Demografia das Empresas e Estatísticas de Empreendedorismo 2022, divulgada pelo Instituto Nacional de Geografia e Estatística (IBGE) no ano passado. Mas alguns empreendimentos superam os desafios e chegam aos 30, 50 e até passam dos 100 anos de história, se apoiando na tradição e na capacidade de se reinventar. A maioria conquista esse feito por estar entre família, com um propósito que une gerações e transforma realidades. As empresas familiares representam a grande maioria dos negócios no país (90% do total), sendo responsáveis por mais da metade do Produto Interno Bruto (PIB) e 75% dos empregos, aponta o IBGE. Em Juiz de Fora, empreendimentos familiares como Procopão, Casa Orion, Mexicana, Casa Chic, Pipoca do Trenzinho, Drogaria Silva e Banca Pioneira são alguns dos negócios mais antigos da cidade e que precisaram se modernizar para permanecer relevantes com o tempo.
Esses espaços formam a memória afetiva da comunidade. Mais do que simples pontos de venda, esses empreendimentos ajudaram a construir a identidade de JF. Cada um, à sua maneira – seja com um pastel que remete à infância, um bar que guarda histórias em cada mesa, uma barraquinha de pipoca que virou ponto de encontro ou uma banca de jornal que viu o tempo passar –, teceu uma parte do cotidiano e das tradições locais. Sua longevidade não apenas garante a continuidade de um legado empresarial, mas também preserva e reforça os laços culturais, sociais e até gastronômicos que definem o que é ser juiz-forano. Mas como fazer isso em tempos de redes sociais, crises econômicas e constantes mudanças no mercado? Para entender esse cenário, a Tribuna ouviu esses comerciantes, que compartilharam a experiência acumulada ao longo de décadas.

Procopão e os 90 anos de tradição
Um dos Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) mais antigos não só de Juiz de Fora, mas também do Brasil, é o do bar Mariano Procópio, o Procopão. Em meio a grande crise econômica mundial de 1929, o imigrante italiano Orestes Mandia fundou o comércio que se tornou ponto de parada para viajantes que faziam o trajeto Belo Horizonte – Rio de Janeiro, pois, além de ficar no caminho, também funcionava como posto de venda de passagens. Em 1955, um casal de imigrantes portugueses, Antônio e Albertina Alves, adquiriu o estabelecimento, e, desde então, ele permanece na família, passando de pai para filhos. Hoje, Bárbara Alves Dominato, neta do casal, é a responsável pelo negócio ao lado de seu pai. “Para mim, poder administrar o bar foi como herdar uma joia de família. Estou à frente de um negócio que foi o sustento dos meus avós, dos meus pais e agora é da minha família. Todo o amor transmitido de geração a geração faz a essência do Procopão.”
Na década de 1950, o foco do bar consistia nos serviços de café da manhã e almoço para atender os trabalhadores da região. Porém, quando os pais da Bárbara assumiram o negócio, o comércio local já não era tão forte e eles passaram a funcionar no período da noite, como bar e restaurante. Mais tarde, Bárbara viu um potencial gastronômico e passou a investir na oferta de almoço aos fins de semana. “Hoje, o carro-chefe do Procopão é o almoço de sábado e domingo. Todas essas mudanças foram feitas a partir da observação do comportamento do nosso consumidor. Precisamos entender que é um restaurante com uma veia tradicional, mas que precisa ir acompanhando as mudanças.” Em homenagem à cidade que recebeu o bar, o cardápio conta com pratos chamados de “Manchester Mineira” e “Mariano Procópio”. “O Procopão é extremamente intrínseco a Juiz de Fora. Nós nutrimos um carinho pela cidade e pelo nosso bairro, que inspirou o nome do bar, o Mariano Procópio.”
Casa Orion e os passos da quarta geração

Apesar dos negócios familiares serem maioria no país, o desafio da sucessão é um obstáculo para muitas empresas. Conforme estudo do Banco Mundial, apenas 30% dessas empresas chegam à terceira geração e 15% conseguem sobreviver além desse ponto. A loja mais antiga de artigos esportivos de Juiz de Fora faz parte dessa parcela. Pedro Turolla é a quarta geração da Casa Orion, comércio na Marechal Deodoro que esse ano completou 95 anos de existência. Tudo começou com seu bisavô, Victório, e teve prosseguimento com seu avô, Oddone, e em seguida seu pai, Marcus. Cada um pôde implementar a sua identidade no negócio: seu avô, por exemplo, foi o responsável por trazer os artigos de esporte e investir em publicidade para a loja. Com as portas abertas, eles passaram por guerras, troca de governo, ditadura, mudança na moeda e a chegada das redes sociais. Para Pedro, que estudou Economia e buscou trazer essa modernidade necessária ao negócio, o diálogo com as outras gerações foi a parte mais importante.
E foi justamente a partir da conversa que ele foi implementando as mudanças que também enxergava como necessárias. “Vi que aqui tinha uma oportunidade de negócio. Conversei com meu pai e conversamos com meu avô. Eles toparam que fizéssemos uma modernização em termos de gestão e trouxéssemos novos conceitos. Em um negócio de muitos anos, o fator cultural é muito forte”, explica. Ele entendeu que era necessário adotar um sistema de gestão para trazer mais dados, ser mais assertivo nas compras para não deixar estoque parado e investir em uma equipe que funcionasse como consultores. Mas essa modernidade não se contrapôs à tradição em momento algum, pois ele sabe que é esse justamente o diferencial: “Tem gente que entra na loja e vem matar a saudade, porque vinha com o pai ou o avô. E continuam comprando com a gente, porque mantemos esse foco na experiência da compra presencial. Saber que meu bisavô, avô e meu pai vêm de desafios superados é uma âncora pra mim”.
Mexicana e o sabor que se mantém

A história da pastelaria Mexicana começou a ser escrita na década de 1970 quando o operário José Victor Furtado decidiu complementar a renda da família com a venda de pastéis. Na época, ele trabalhava em uma fábrica de tecidos e, com o apoio de sua esposa, Neide Delage Furtado, começou a vender os produtos em um pequeno tabuleiro em um campo de futebol no município de Barbacena, distante a cerca de cem quilômetros de Juiz de Fora. O nome, que hoje já faz parte da memória dos juiz-foranos, surgiu ainda neste período. José usava um sombrero para se proteger do sol forte na hora de vender os pastéis e, como era época de Copa do Mundo, sediada no México, o seu slogan era: “pastéis quentinhos direto de Guadalajara”. “Isso foi o suficiente para ter sucesso com as vendas e surgir o nome Mexicana”, conta sua filha Vânia Delage, que atualmente está à frente dos negócios junto com suas irmãs Suzy e Andréa.
A mudança de município aconteceu em 1976 com a expectativa de desenvolver o negócio em uma cidade maior. Desde então, quem passa pelo cruzamento das principais avenidas vê o food truck colorido da Mexicana. “A pastelaria está no coração da cidade e no de muitas pessoas. Isso se torna muito claro, quando recebemos relatos, por vezes emocionados, de fregueses que conheceram a Mexicana quando crianças e, depois de longo tempo fora, a visitam e ficam maravilhados com o mesmo sabor que remete a grandes recordações.” Recentemente, em junho deste ano, a pastelaria foi reconhecida como Patrimônio Cultural da cidade. Para Vânia, esse título reflete a manutenção de uma tradição de mais de 50 anos que privilegia o preparo artesanal, mas sem deixar de incorporar novas tecnologias para atender ao volume crescente de clientes. Foi pensando nisso, que o negócio migrou para o mundo digital com o serviço de delivery.
Casa Chic e a cidade que a acolheu

De algumas datas, Mounira Rahme nunca se esquece. É o caso de 20 de fevereiro de 1954, quando ela chegou ao Brasil, vinda da Síria, e veio direto para Juiz de Fora. A comerciante e proprietária da loja de tecidos Casa Chic, que já tem 72 anos de existência, assumiu o negócio fundado pelo cunhado após a morte do marido, e foi assim que conseguiu criar seus filhos e netos. Ela aprendeu português medindo tecidos e incorporou o amor pelo Brasil em cada detalhe: no contato com os clientes para muito além apenas da escolha dos tecidos, na adoção dos artigos de Carnaval e na vontade de continuar vestido várias gerações da cidade. É também por esse encanto com a rotina que, para ela, o período mais difícil de todos esses 53 anos em que vive no país foi a pandemia de Covid-19, quando precisou se afastar da loja.
O segredo para um negócio se manter por tantos anos, em sua visão, vai além de se atualizar nas questões de mercado ou mesmo conseguir sobreviver a adversidades diversas como o confisco da poupança — o que ela também enfrentou. É uma questão ética que faz com que ela seja procurada pelos clientes: “Eu falava com meu marido, com meu cunhado, como aprendi na Síria. O que faz isso aqui sobreviver são as coisas que são importantes em qualquer serviço: honestidade, respeito e qualidade. Eu fui muito pobre, então sei o quanto eu trabalhava para ter dinheiro pra comprar algo, e tenho que honrar isso”. Tudo que acredita, ainda, se baseia no mesmo sentimento que teve quando decidiu tornar o país seu lar, tantos anos atrás. “Se o brasileiro descobrir e reconhecer a terra que tem, nosso Brasil seria o primeiro país do mundo. Não existe lugar igual. Quando viajo e chego no Rio de Janeiro, começo a chorar de alegria, de tanta felicidade de estar aqui”, diz.
Pipoca do Trenzinho e o gosto atemporal de JF

São 78 anos vendendo pipoca no Parque Halfeld, em uma tradição que começou com Nelson, após ter um problema de saúde que o impedia de ter um emprego formal. Ele então precisou criar alternativas para sustentar os seus dez filhos – entre eles, Gilsimar de Matos, o Pepê, que hoje é quem comanda o carrinho e que trouxe a identidade visual de trenzinho mais tarde. Com apenas 7 anos, ele já observava de perto como o pai fazia a pipoca e foi pegando gosto pelo trabalho, que se diferenciava justamente pelo carro-chefe, a pipoca com queijinho, que já virou uma das iguarias mais originais de JF. Foi o seu pai e o pipoqueiro Walmor, dois amigos, que começaram a tradição que se espalhou por toda a cidade. “Com a experiência, a gente aprende muita coisa. A forma como o milho se expande, a importância de escolher o melhor queijo parmesão e a forma de conservar para fritar sem que fique salgado demais, qual açúcar refinado usar na pipoca doce”, explica ele.
A ideia de trazer o trenzinho veio pela expressão mineira, e também pela possibilidade de decorar o local de trabalho de uma forma que chamasse a atenção dos clientes. Por aliar essa tradição e sempre procurar os benefícios para os clientes, ele entende que é possível continuar no mercado por tantos anos e servir pipoca para diferentes gerações. “Tem pessoas que vão para fora do país e contam que quando comem a pipoca com queijinho de novo é que sabem que estão em casa”, diz. Para ele, essa memória afetiva e a capacidade do produto de se relacionar com diferentes gerações fizeram com que sempre perdurasse. “Agora há pouco, estourou o morango do amor. Teve uma época que era a pipoca de microondas e a pipoca gourmet. Mas a pipoca tradicional sempre se manteve. E a gente faz com toda a qualidade”, ressalta.
Drogaria Silva e a história de quase um século
A Drogaria Silva surgiu quando a Avenida Getúlio Vargas era chamada de Avenida XV de Novembro. Foi ali, no número 597, que a loja abriu suas portas. A data exata da abertura não se sabe, mas existe uma nota fiscal datada de março de 1926, que mostra que essa trajetória já tem pelo menos quase cem anos. O fundador foi um representante de laboratório do Rio de Janeiro, o senhor Jayme Silva, que, sem herdeiros, deixou o negócio para o pai e o tio de Glauco Batista, atual administrador da farmácia junto com suas irmãs mais novas. A drogaria se tornou referência em produtos naturais e da flora medicinal, com técnicas de homeopatia e fitoterapia. Para Glauco, a valorização do cliente foi o principal ensinamento deixado pelos fundadores. “Ter um negócio é desafiador, uma tarefa difícil, que não tem fórmula. Mas o carinho com a clientela ajuda a manter um bom atendimento.”

Até a pandemia, a farmácia ainda não estava inserida no ambiente digital, mas isso mudou e se consolidou como uma das suas principais frentes, um movimento que se alinha ao cenário mineiro. Segundo a Pesquisa E-commerce 2025 da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo de Minas Gerais (Fecomércio-MG), que ouviu 406 empresas, a presença on-line dos estabelecimentos comerciais tem crescido anualmente, passando de 57,1% em 2023, para 64,3% em 2024 e atingindo 76,6% em julho de 2025. “São cem anos de história. Poucas empresas de JF têm, acho que poucas do Brasil. É algo que não pode ser descartado e tem um valor. Nós nos escoramos muito na força da tradição, o que empresta credibilidade e segurança, mas sem deixar de olhar para o futuro.” Uma empresa com tamanha longevidade acompanha as transformações da cidade. “Sempre entendemos a empresa conectada aos juiz-foranos. Acompanhamos as gerações surgindo, crescendo e, às vezes, indo embora também. As pessoas trazem para a gente histórias pessoais suas, dos seus filhos e pais. Não tem como entender a história da Drogaria Silva sem a sensação de pertencimento à comunidade de Juiz de Fora.”
Banca Pioneira e a reinvenção no digital

Entre todos os negócios apresentados, talvez uma banca de jornal tenha sido o tipo de comércio que mais se modificou com o tempo. Inclusive porque o produto vendido encontrou espaço também no digital e fez com que a forma de consumo se transformasse. “Viramos mais um ponto de conveniência, que vende de tudo. E aproveitamos porque conseguimos trabalhar em um horário em que as lojas já estão fechadas”, diz Giulio Caruso. Ele é a terceira geração da Banca Pioneira, que tem 98 anos, e foi responsável pelo negócio nos últimos anos. “Meu pai mesmo não queria que a gente ficasse. Meu pai falava que banca de jornal ia acabar. Escuto isso desde os 10 anos, mas insisti e acreditei.”
A possibilidade de continuar, como banca, se deu por esse investimento no novo, ao mesmo tempo em que passou também a olhar para comunidades de colecionadores — que ficam ainda mais fáceis de serem encontradas com a internet. “Teve um sábado que estava chovendo muito, de um jeito que não tinha como sair da banca. E a distribuidora mandou um caminhão de uma revista de faroeste, que eu não tinha costume de vender. (…) Fiz um vídeo da revista pra ver o que ia dar, porque se eles fizeram aquela quantidade era porque tinha procura. Em 3 dias vendi mil revistas, pra todos os estados do Brasil. E nunca tinha vendido para fora de JF”, relembra. Ele foi conquistando a confiança também desse público e, desde então, não abandonou mais as redes e os clientes que chegam através de grupos específicos de leitores de revistas. Para além disso, entende que a banca assumiu para si o posto de um ponto de encontro: “Enquanto tiver gente circulando no Centro, vamos ter o que vender. Seja o que for. O que a população necessitar, vamos oferecer”, diz.