Comércio ilegal do passe fácil


Por Renata Brum

06/11/2011 às 06h00

O passe fácil, cartão de vale-transporte que é um direito do trabalhador para se deslocar até o trabalho e um dever da empresa, tem sido utilizado em Juiz de Fora com fins bem diferentes. O benefício está sendo comercializado por usuários por valores até 30% menores. Ou seja, cada crédito, de R$ 1,95, é repassado, em média, por R$ 1,40. O esquema não se limita à entrega do cartão para um familiar ou amigo, mas ultrapassa as roletas e envolve cobradores e bares da região central da cidade. Nas últimas semanas, a Tribuna andou diversas vezes de ônibus, frequentou o Centro da cidade e conseguiu desvendar como este comércio funciona (ver quadro).

A reportagem foi aos antigos pontos de venda de tíquetes de papel e descobriu, sem dificuldades, onde vender o cartão eletrônico através da dica da atendente de uma das lojas que antigamente comercializavam vales impressos: "Agora é só com os cobradores. Você não conhece algum não?" Mais fácil ainda foi negociar o cartão em um bar do Centro. "Aqui a gente está pagando R$ 1,35 pelo crédito. Mas você tem que deixar o cartão e tirar o extrato para ver quanto tem certinho. Deixa o número do celular também. No dia que cair (que todos os créditos forem utilizados), a gente te liga", explica um funcionário do estabelecimento.

No interior dos ônibus, o esquema pode ser constatado. Os cobradores ficam com cartões de trabalhadores que não utilizam o benefício. Quando entra algum passageiro com dinheiro, ele passa o cartão e reserva o dinheiro para seu "cliente". Um dos trocadores ouvidos pela Tribuna mostrou 38 cartões de usuários diversos. "Eles deixam comigo, porque a maioria tem carro ou moto e, como não usa o cartão, os créditos só vão acumulando. Dou R$ 1,50 por crédito e fico com R$ 0,45. Quando zera o cartão, ligo para a pessoa e marco de pegar o dinheiro."

Ação mesmo com câmeras

Apesar de o esquema no transporte coletivo ser visível para observadores mais atentos, as câmeras instaladas em alguns dos ônibus não impedem a ação de cobradores. "No meu bairro, é comum isso acontecer. O cobrador fica com o cartão do usuário, que repassa para ele no preço mais baixo. Ele vai passando esse cartão toda vez que entra alguém com dinheiro. Depois ele acerta com esse usuário", contou B., moradora da região Leste da cidade.

Outra usuária, J., 31 anos, moradora da Zona Norte, também relata a mesma situação. "Toda vez acontece de o cobrador passar o cartão e pegar o dinheiro nas linhas que utilizo. Tem vez que o cobrador fica com três cartões nas mãos e cada hora vai passando um", conta.

Em um dia circulando em seis linhas diferentes que atendem a população das regiões Norte, Leste e Sudeste, a Tribuna verificou que cinco cobradores, em algum momento da viagem, passaram o cartão quando o passageiro pagava em dinheiro. Num coletivo em um ponto da Avenida Getúlio Vargas, durante a permanência da reportagem no veículo, o cobrador passou um cartão duas vezes em momentos em que os passageiros pagaram em dinheiro.

Em outro dia, as mesmas cenas foram flagradas em ônibus de linhas diferentes. Muitos esperam o momento de entrada de usuários ainda nos bairros, ou quando o coletivo está bem cheio no Centro. Próximo a um ponto de troca de turno, o cobrador chegou a passar dois cartões distintos e retirar do caixa certa quantia, antes de deixar o posto. Toda a ação foi acompanhada de perto pela Tribuna.

Um dos cobradores abordados pela reportagem após o flagrante abriu o jogo. "Muita gente não usa, e só vai acumulando. Hoje, olha, eu estou com quatro cartões diferentes, mas tem gente com 20, ou mais. Mesmo com as câmeras, ainda passa. O certo, seria que a Astransp devolvesse o dinheiro para os usuários quando não usassem tudo. Dessa forma, não teria isso. Depois que a Prefeitura autorizou a utilização de oito passagens por dia, está mais fácil ainda", contou um cobrador.

O cobrador que estava com 38 cartões em mãos chegou a mostrar também a caderneta, na qual anota toda a contabilidade: "Anoto a inicial de cada dono do cartão e, a cada crédito utilizado, vou escrevendo para não me perder. As pessoas confiam. Pode ver que todo mundo me procura. Tinha gente que ficava devendo os usuários", contou ele.

O advogado e professor de direito do trabalho Carlos Eduardo Paletta Guedes explica que a comercialização do benefício resulta em prejuízo para as empresas empregadoras e alerta que, tanto no caso dos funcionários quanto dos cobradores, o resultado pode ser a demissão por justa causa. "Pela lei que trata sobre o vale-transporte, é obrigação do empregador arcar com o vale, mas desde que o empregado de fato precise, que faça uso efetivo do mesmo. Caso contrário, o patrão pode cortar o benefício".

Nesse esquema de venda, segundo o especialista, o colaborador pode até estar cometendo um ato de improbidade e cabe a demissão por justa causa, de acordo com o parágrafo 3º, Artigo 7º, do decreto número 95247/87, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que trata do uso indevido de um benefício. "Quando ele inicia o trabalho em qualquer empresa, é questionado sobre a necessidade do vale, se tiver prestando informação falsa, penso que pode caber até mesmo uma falsidade ideológica."

Além das empresas, as viações também estão sendo prejudicadas. "As empresas de transporte estão custeando um valor que tem ido para o bolso do cobrador. Os envolvidos podem ser demitidos por justa causa, pois estão agindo em conluio com quem vende o benefício", afirma o advogado.

Usuários

De acordo com o Censo 2010, dos 517.872 habitantes de Juiz de Fora, pelo menos 34%, o equivalente a 175.600, utilizam o ônibus como meio de transporte urbano. Deste total, 71% são pagantes, totalizando 124.676 usuários, entre os quais, 102.857, ou 82,5%, utilizam o cartão passe fácil tipo vale-transporte, voltado para quem tem vínculo empregatício, inclusive empregados domésticos.

Settra diz que intensificará fiscalização

O secretário de Transporte e Trânsito de Juiz de Fora, Márcio Gomes Bastos, lamenta as irregularidades que têm ocorrido no sistema. "Infelizmente, sempre dá-se um jeitinho de burlar. Consideramos a situação como indevida e indesejável, e estamos abertos a denúncias que possam objetivar a apuração desses casos. Pelo sistema de bilhetagem, é possível identificar quem é o usuário, quem é o cobrador e ambos estão sujeitos à penalidades".

Questionado sobre a venda do passe fácil, o secretário informou que já havia chegado à Settra casos pontuais, "mas não tínhamos a noção de estar dessa forma e inclusive em bares. Mas vamos checar os carros e verificar os ilícitos. Temos o espelho de toda a movimentação e as empresas também. Vamos intensificar a fiscalização."

A Astransp, por meio de nota, também "lamenta o uso indevido do cartões eletrônicos em Juiz de Fora". Segundo a nota, "as empresas associadas à Astransp realizam um acompanhamento permanente e criterioso do uso dos diferentes tipos de cartões eletrônicos, desde a implantação da bilhetagem e reiteram que, enquanto a modalidade vale-transporte teve seu uso bloqueado pelo tempo de 30 minutos no mesmo validador, a situação ocorreu dentro dos padrões esperados. A Associação sempre defendeu o sistema como o ideal para evitar fraudes. Sempre acreditou no benefício do fim do bilhete de papel para coibir a comercialização ilegal e repudia o retorno desta situação."

O texto ainda cita que, desde a reprogramação do sistema para permitir o uso de até oito créditos por dia, o controle das empresas ficou extremamente comprometido. A associação informa ainda que "só cerca de 60% dos carros têm câmeras instaladas." Com isso, a associação "não concorda com a afirmação de que a prática ilícita possa ser comum nos carros com câmeras. O que pode haver são casos muito pontuais, ainda não diagnosticados."

Fragilidade do sistema é evidenciada

A fragilidade do sistema de bilhetagem eletrônica também ficou evidente com outro caso recente denunciado à Tribuna. Após o furto de uma bolsa, na região Norte da cidade, a funcionária de uma empresa teve o cartão vale-transporte praticamente zerado em menos de 36 horas. Ela até tentou bloquear o cartão logo após o furto, pelo telefone da central de atendimento da Astransp, e disse não ter sido atendida. No dia seguinte, esteve na Astransp e retirou o extrato, já quase zerado.

Apesar de o sistema ter sido alterado sob a alegação de que seria uma alternativa mais segura para evitar fraudes, não é isso que vem acontecendo. No ano passado, após a extinção da modalidade papel, por decreto municipal, o secretário de Transporte e Trânsito, Márcio Gomes Bastos, disse que a regulação se fazia necessária para inibir o uso indevido do cartão vale-transporte. Em janeiro deste ano, após discussões na Câmara sobre o sistema, a subsecretária Operacional de Transporte da Settra, Roberta Ruhena, também confirmou que a mudança foi feita, entre outros motivos, para evitar a transformação do benefício trabalhista em moeda, como acontecia com o tíquete de papel.

No início da implementação do sistema de bilhetagem, a Astransp também teria divulgado que uma das funções dos cobradores seria conferir, no smart card, a foto do usuário nos cartões de gratuidade e vale-transporte, entretanto, os últimos não têm fotos para identificação dos usuários.

Pelo país

Os golpes com cartões eletrônicos não são exclusivos de Juiz de Fora. Em algumas cidades do Nordeste, cambistas foram presos revendendo cartões que tinham sido comprados de empregados municipais e que seriam alugados a terceiros. No Rio de Janeiro, os aproveitadores têm escritório e costumam agir até com panfletagem nas ruas. A negociação entre o usuário e os cambistas é garantida por um contrato.

 

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