Grafias familiares
Nos cartórios, eles definem heranças, direitos e deveres. Na religião, são recebidos em sacramento. Na história, já despertaram incontáveis disputas de poder. Na ficção, motivaram tragédias como a de "Romeu e Julieta". Elemento que ata os laços familiares e funda descendências, o sobrenome desempenha funções pragmáticas, sem perder sua força simbólica e social. Trata-se de um elo documental com o passado, capaz de relevar não só parentescos, mas também peculiaridades históricas e culturais.
Muitas vezes, o que chama atenção são os descaminhos que fazem um sobrenome sofrer alterações entre gerações. Esse é o caso de muitas famílias de imigrantes que tiveram os nomes de suas famílias alterados na chegada ao Brasil, por erro de comunicação no momento do registro. Assim, letras foram suprimidas ou alteradas em uma aproximação com a sonoridade do português: Bagnato virou Banhato, Mitterhofer tornou-se Mitterofe, entre outras centenas de exemplos.
Conforme o historiador Roberto Dilly, a dupla grafia era uma situação recorrente até o final do século XIX, uma vez que, antes da República, não havia cartórios. O registro ficava a cargo da Igreja Católica, por meio da certidão de batismo, ou, no caso dos imigrantes, nas mãos de oficiais com pouca instrução formal. "Imagine como era a situação desses funcionários, tendo que lidar com o sotaque dessas pessoas", comenta.
Diante dessa realidade, surgem casos de irmãos registrados com sobrenomes diferentes ou de mais de uma variação para a mesma grafia original. É o caso de Hagele, que passou a ser escrito como Hagler, ou simplesmente Hagle. Outro exemplo é o sobrenome Weiss, que aparece sem um dos "s" (Weis) ou de forma abrasileirada (Vaz), criando uma confusão com o nome familiar de origem portuguesa.
A alteração do sobrenome entre as gerações pode ser um complicador para quem deseja iniciar um processo de dupla cidadania. Esse é o caso de muitos descendentes de italianos na cidade, que hoje tentam resgatar os laços com o país europeu, a exemplo do chef Leonardo Chevitarese. O sobrenome de seu bisavô, Victor Civitarese, foi alterado no momento da chegada ao Brasil e propagou-se por seus descendentes. "Essa busca é uma forma de voltar às raízes e recuperar um contato há muito tempo perdido. Mas antes de iniciar o processo, preciso que meu pai faça o mesmo", conta, relatando os trâmites burocráticos necessários.
O diretor do Museu Mariano Procópio, Douglas Fasolato, recuperou a grafia original do nome de sua família depois de um processo semelhante. Até então, assinava como Fazolatto. Segundo o pesquisador, foram encontradas diversas outras variações a partir do nome do imigrante Valentino Fasolato. "A sorte é que a família guardou o passaporte dele e da mulher, Elvira Pressato. Foi então que decidimos propor uma ação de retificação de nome, envolvendo quase uma centena de certidões", conta.
Em seus estudos genealógicos, Fasolato também descobriu uma alteração ocorrida na Itália, em função de uma postura intelectual. No século XVIII, o professor da Universidade de Padova, Giacomo Fasolato, estudioso do latim, mudou seu nome para Jacopo Faciolati, por julgar coerente com seu ofício.
No caso do escritor Vicente Clemente, o erro de grafia virou tema de livro. Em "Os alemães e a borboleta", o autor narra a chegada dos imigrantes germânicos na cidade, para a construção da Estrada União e Indústria, e também relata sua busca pelas raízes familiares. Originalmente "Clemens", o sobrenome foi aportuguesado para "Clemente". Descobrir a escrita correta do sobrenome envolveu muita pesquisa. A chave para o mistério surgiu em um livro guardado na Igreja da Glória, onde estavam listados o nome e a origem de todos os imigrantes que chegaram a Juiz de Fora para a colônia Pedro II.
No caso dos imigrantes alemães, especificamente, um fator histórico contribuiu para a mudança de alguns sobrenomes. Segundo Dilly, para escapar de perseguições durante a Segunda Guerra Mundial, muitos decidiram fazer alterações por conta própria. Essas mudanças também aconteceram em outros âmbitos. Declarada a guerra, a Avenida Berlim, no Bairro Manoel Honório, foi rebatizada como Avenida Governador Valadares.
Prenome (nome de batismo), seguido do sobrenome materno e paterno: a fórmula parece muito natural no Brasil, mas pode soar incomum em outras línguas e culturas. No espanhol, por exemplo, o sobrenome materno vem por último. A ordem também se altera em idiomas como húngaro, vietnamita, chinês, japonês e coreano, quando o prenome passa para o fim.
Além do modelo tradicional de parentesco, a história registra outras maneiras de se adquirir um sobrenome. Em suas pesquisas, Douglas Fasolato reuniu casos curiosos de famílias que passaram a ser conhecidas pela tradição de tratamento, em detrimento do sobrenome original. No caso dos Assis, contou a devoção a São Francisco de Assis. O nome do santo acabou incorporado ao sobrenome original da família Ribeiro do Valle. Dessa forma, seus descendentes tornaram-se Francisco de Assis Ribeiro. Situação semelhante aconteceu com os Francisco de Paula Rodrigues, de Ibitipoca, que agregaram uma homenagem a São Francisco de Paula.
O costume português de adotar o sobrenome de suas cidades ou estados de origem também gerou sobrenomes conhecidos, como Guimarães ou Braga. Outro dado histórico refere-se aos descendentes de escravos, que, por necessidade, acabaram adotando os sobrenomes de seus ex-donos, principalmente depois da Lei Áurea.
Em um país como o Brasil, em que as origens se misturam, a pesquisa genealógica pode ser um caminho para compreender nossa identidade, formada de muitos matizes. Portais na internet facilitam essa busca, oferecendo serviços pagos ou acesso gratuito a listas com nomes de imigrantes que desembarcaram no Brasil. Redes sociais também podem resultar em meios eficientes de pesquisa. "Vale a pena procurar a sua história familiar, pois é uma experiência surpreendente. No fim das contas, todo mundo tem um pouco de tudo. Isso transforma o Brasil em um país de todos", comenta Roberto Dilly.