Muro próximo à Praça da Estação recebe intervenção de artistas e da população
Atividade é fruto do “Programa Educativo Iphan+80”, realizado em Juiz de Fora nesta última semana
Vanderlei Loures ficou durante um bom tempo atrás da faixa de segurança que distanciava os carros de uma série de pessoas que se voltavam a um muro, bem no encontro entre a Rua João Pessoa de Rezende e a Travessa Doutor Prisco. Com os braços cruzados, observava atentamente os desenhos eternizados naquele muro da linha férrea, bem próximo à Praça da Estação. Com um fundo vermelho, há ali representações diversas, feitas pela artista visual Anna Göbel: o Cine-Theatro Central, própria Praça da Estação, Roza Cabinda, o Batuque Afro-brasileiro de Nelson Silva, Museu Mariano Procópio, Morro do Imperador, desenhos de Portinari, carnaval e Parada Gay. Uma infinidade de elementos que, de certa maneira, contam a história de Juiz de Fora. E é exatamente esse o intuito do “Programa Educativo Iphan+80“, que possibilitou a intervenção nesse ponto de Juiz de Fora, nos dias em que a equipe esteve na cidade, nesta última semana.
Bastou que seus companheiros de aula do Centro de Educação de Jovens e Adultos Doutor Geraldo Moutinho (CEM) chegassem à intervenção, que Vanderlei logo pegou o pincel. Escolheu uma cor, a marrom, e foi pintar exatamente o batuque, que ganha destaque no muro. Ele conta que já desenha e pinta, e, quando falaram na aula sobre a possibilidade de participar dessa intervenção, logo topou. Chegou antes para acompanhar ainda mais o processo. “Eu acho que é uma distração muito boa. E motiva. Além disso, eu gostei dos desenhos que valorizam também os negros. É uma forma de valorizar nossa cidade e nossa história.”
Nas últimas quinta e sexta-feira, os alunos do CEM foram convidados a fazer parte do “Programa Educativo Iphan+80”. Quando chegaram, os desenhos feitos por Anna já estavam feitos. Alguns até já coloridos para dar o encaminhamento do que precisava ser feito por ali. O projeto já percorreu cinco cidades e vai a mais duas em Minas Gerais, sempre colorindo um ponto e levando, em seguida, a formação com os educadores sobre patrimônios e bens culturais. “A pintura dos muros é como um abre alas”, afirma Andréia De Bernardi, coordenadora do projeto.
Ela ainda conta que o programa surgiu ainda antes da pandemia. A proposta já era realizar intervenções em algumas cidades históricas, mas que tivessem um escritório do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Aos poucos, essa ideia foi sendo flexibilizada e, a partir de um convite da MRS, Juiz de Fora entrou também na rota, junto com Belo Vale, Congonhas, Ouro Branco, Mariana, Belo Horizonte, Cataguases e Miguel Burnier, distrito de Ouro Preto.
Um ano antes de realizar a pintura, a equipe vai às cidades escolhidas. Nessa visita, além de identificar o ponto onde a pintura vai acontecer, eles pesquisam sobre a história da cidade, que estampa a produção. Esse muro, em específico, como conta Andréia, foi uma sugestão da Funalfa. “Ele está bem próximo da Praça da Estação, que é um importante patrimônio de Juiz de Fora. E já existem alguns grafites na extensão desse muro. Além disso, ele fica em um lugar muito visível, tem vários pontos de ônibus no entorno. É um muro emblemático e, principalmente, fica próximo a uma escola, que é outro interesse nosso, para que os estudantes participassem dessa construção”, explica.
Muro de histórias
Anna também conta que, há um ano, já tinha em mente alguns detalhes do que queria desenhar nesse muro, depois de um passeio por Juiz de Fora. Foi a partir disso que fez um esboço em um papel. Mas, ao chegar à cidade, na quarta-feira, identificou outras atrações que, de acordo com ela, precisariam entrar no mural. “Tem o acaso e de repente aparece mais alguma coisa. A feira noturna, por exemplo, entrou no desenho ontem à noite. Eu vi a feira e estava lotada, e pensei que era uma coisa importante. E coloquei a feira. Eu gosto sempre de deixar, nos meus projetos de mural, essa possibilidade do que acontece no momento”. Além do “Programa Educativo Iphan+80”, ela tem também o projeto Miradas de Afeto, que já rodou por diversas cidades do Brasil, sempre apostando na participação da comunidade e na contação de história por meio do desenho.
Nesse processo que envolve alguns dias, é interessante que a comunidade, de fato, participe. Há quem para, observa e até conversa com a equipe. Sobretudo nesse lugar escolhido em Juiz de Fora, com trânsito tanto de carro quanto de pedestre de forma constante, o contato é, de fato, aprofundado. E isso faz com que toda a experiência seja diferente. Até o próprio muro ganha outras formas. “Eu acredito na força do trabalho na rua. Eu sou artista plástica, faço meus quadros, tenho vários livros infantis, e sempre quis que a minha arte estivesse onde o povo está. A rua é muito forte.”
Antes de receber os alunos do CEM, quando Anna ainda pintava o muro, um transeunte chegou, identificou seus familiares sendo representados ali e conversou com Anna, que, de imediato, sentiu o sentimento de dever cumprido. “Eu me coloco à disposição. Por isso gosto de pintar com as pessoas. Além de elas se identificarem com o que está sendo retratado, existe um esforço do pertencimento. Eu acho que um grande passo para a sustentabilidade no mundo é sentir o mundo como nossa casa. A gente não cuida do que a gente não ama. Então, a gente tenta colocar coisas sempre com a esperança de atiçar a curiosidade, se não souber, por exemplo, quem é Roza Cabinda. Ficar mais atento, quem sabe. Porque eu acho fundamental saber a história do lugar onde você está”. E, nesse processo, Anna coleciona histórias.
Tereza Cândido do Nascimento, outra aluna do CEM que participou da intervenção, foi logo determinada a pintar o muro. Ela sabia também a cor que queria e o lugar: o verde e o adorno que representa o carnaval. Ela nunca tinha pintado, mas quis participar porque tem memórias importantes com aquele lugar: “Eu conheço esse espaço, porque meu pai trabalhava aqui, na Estrada de Ferro. Então, esse pedaço todo aqui eu conheço. Sei onde fica tudo. E olhando no muro eu identifico também várias coisas da cidade. E isso faz parte da história de Juiz de Fora. Eu achei muito bonito. É um incentivo para todo mundo. Agora eu vou passar aqui e vou poder falar: pintei ali”.
Chico, Clara e Milton
Mas não é todo mundo que se sente aberto a participar da pintura. Aqueles mais tímidos têm certa dificuldade em colocar a mão na massa. E é para isso que eles contam com a Clara Minas Nunes e o Milton de Minas Nascimento, os bonecos do também artista Chico Simões, que faz parte do “Programa Educativo Iphan+80”. São eles que promovem esse diálogo sobretudo com as crianças. E foi ainda criança que Chico percebeu o poder deles.
“Eu, quando vi um espetáculo de teatro de bonecos, fiquei impactado: como ao mesmo tempo que eu sabia que eles não eram vivos, eu dava todo o crédito para eles. Eu percebi que eles eram um canal, um veículo de comunicação, com quem tem essa dificuldade natural, por exemplo de uma criança falar com o adulto. Dificuldade que não existe quando a conversa é com um boneco. O boneco é uma porta, um portal, uma chave para abrir e ampliar esse espaço de comunicação. E a gente tanto fala coisas com eles que a gente não falaria, como a gente escuta do público coisas que a gente não escutaria como pessoa, como ser humano”, acredita Chico.
E esse contato que Chico estabelece é fundamental para que as pessoas entendam que a intervenção é mesmo de todo mundo. Quando um dos estudantes alega que não quer pintar para não estragar o que foi feito, Chico, de imediato, responde: “Aqui ninguém estraga nada. A gente só faz diferente. É livre. A pessoa que age”. E, dessa forma, todos os estudantes participaram da intervenção e deixaram ali sua contribuição nessa intervenção que é mesmo de todo mundo.
Sentido de eternidade de um artista
O muro foi pintado de vermelho em uma região maior do que a que foi usada para os desenhos. Anna conta que a ideia é que as pessoas tenham também vontade de ocupar aquele espaço com suas intervenções, da forma como quiserem. E marca não só a cidade, mas os artistas. “O sentido que a gente tem de eternidade e permanência para além da nossa vida biológica é deixar um pouco da nossa vida simbólica e artística. É como se a gente ficasse em cada lugar que a gente passa. E, claro, a gente leva também desse lugar, até onde a gente for, alguma coisa. Então isso vai ampliando a nossa presença e a nossa existência. A gente vive a diversidade em todos os sentidos e vê o quanto o mundo é rico e diverso”, finaliza Chico, com Clarinha e Milton ao seu lado.