ConheƧa ‘Trilogia de Copenhagen’, obra da escritora dinamarquesa Tove Ditlevsen
LanƧado no final de outubro pela Companhia das Letras, livro Ʃ considerado obra-prima e dialoga com o nosso tempo
A obra āTrilogia de Copenhagenā, escrita por Tove Ditlevsen e lanƧada no final de outubro pela Companhia das Letras, Ć© dividida em trĆŖs partes: InfĆ¢ncia, Juventude e DependĆŖncia. A autora, que publica desde os 22 anos, se dedica nesta obra a se lembrar da prĆ³pria existĆŖncia, expor seus maiores anseios, relembrar momentos de solidĆ£o e os percalƧos para se tornar o que ela mais quis a vida inteira – uma escritora. Com uma escrita sensĆvel, penetrante e por vezes de lucidez assombrosa, essa escritora dinamarquesa parece evocar um estilo e uma tendĆŖncia que nos Ćŗltimos dez anos se consolidou como especialmente forte na literatura, que Ć© a de trazer a sua prĆ³pria histĆ³ria para as pĆ”ginas de forma direta e vezes atĆ© expondo partes dolorosas de si. De qualquer maneira, o que Ditlevsen faz Ć© de uma originalidade enorme.
A primeira parte do livro, āInfĆ¢nciaā, se dedica principalmente a mergulhar nas relaƧƵes familiares da autora, a admiraĆ§Ć£o quase inatingĆvel pela mĆ£e e a vida em um bairro proletĆ”rio e pobre de Copenhagen. Mesmo ainda crianƧa, ela nota que tem um talento especial para criar versos, e que aquilo representa ao mesmo tempo uma benĆ§Ć£o e uma maldiĆ§Ć£o, fazendo com que a autora voltasse a sua existĆŖncia para a possibilidade de criaĆ§Ć£o desde muito nova. Seu pai, quando ela ainda Ć© tĆ£o pequena, no entanto, jĆ” declara que mulheres nĆ£o podem ser poetas. De certa forma, ainda hoje notamos que ele estĆ” correto em afirmar que mulheres nĆ£o podem ser poetas como os homens sĆ£o. Ć por compreender tĆ£o de perto esse deslocamento de sentido que, talvez, a autora compreenda com tanta precisĆ£o a falta de pertencimento e de espaƧo que uma crianƧa tem. Sempre as sombras e sempre desejando uma idade moral que nunca chega, esse momento da vida, para a autora, estĆ” longe de ser um perĆodo de ingenuidade ou de fluidez. Pelo contrĆ”rio, Ć© cruel. O exercĆcio de se lembrar da infĆ¢ncia, ainda quando ficĆ§Ć£o, toma entornos apavorantes quando jĆ” se sabe do envelhecimento e Ć© impossĆvel esquecĆŖ-lo. Os contornos ali desenhados jĆ” indicam as sombras do futuro. “NĆ£o dĆ” pra escapar da infĆ¢ncia e ela nos acompanha como um cheiro”, afirma, em uma das passagens.
JĆ” em āJuventudeā, sĆ£o feitas as primeiras descobertas sobre as dinĆ¢micas do mundo do trabalho e da expressĆ£o da prĆ³pria sexualidade. Nessa parte, encontramos uma personagem que ainda nĆ£o deixou por completo de ser crianƧa, e se encontra ainda mais deslocada entre o mundo da infĆ¢ncia e um outro, o dos adultos e de seus pais, que ainda parece distante. TambĆ©m vemos em Ruth e Nina, duas amigas da autora e que aparecem em partes diferentes do livro, o quanto as amizades femininas parecem ser justamente o espaƧo em que essas fronteiras estĆ£o mais dissolvidas. Ć pela influĆŖncia das amigas que Ditlevsen muitas vezes tenta parecer mais velha, mais esperta, mais desenvolta. Em sua prĆ³pria escrita, e se lembrando do passado, ela mesma nĆ£o esconde as farsas impossĆveis de se escapar daquela Ć©poca. E celebra as partes em que, mesmo assim, encontrava formas de se alegrar.
A Ćŗltima parte do livro, āDependĆŖnciaā, Ć© justamente quando a autora vai se tornando mais madura. Ao contrĆ”rio do que ela pensava ser possĆvel, no entanto, a passagem do tempo faz com que a idade aumente, mas nĆ£o dissolve a sensaĆ§Ć£o de sempre estar presa Ć s circunstĆ¢ncias, Ć histĆ³ria do mundo ou mesmo Ć s amarras sociais. “Quando escrevo nĆ£o tenho consideraĆ§Ć£o por ninguĆ©m. NĆ£o posso”. Essa sinceridade nĆ£o atinge sĆ³ seus ex-maridos e sua famĆlia, mas atĆ© a si mesma, que se encontra desnuda em tantas partes do livro, principalmente aquelas que trata do seu vĆcio, mais para o final da obra. Mesmo trabalhando com as prĆ³prias memĆ³rias, Tove faz ser possĆvel costurar cada acontecimento como inevitĆ”vel, como se a menina das primeiras pĆ”ginas andasse junto com a mulher das Ćŗltimas, como se a escritora conseguisse ter um distanciamento ao mesmo tempo que um olhar tĆ£o atento para o que viveu. Muito autobiogrĆ”fica, a obra, no entanto, tem um relato breve da vida de Tove Ditlevsen. Nessa parte, que em dinamarquĆŖs Ć© chamada de āGiftā, que traz uma ambiguidade entre casada e veneno, Ć© possĆvel ver as dores que ela enfrenta.
Nas sombras da histĆ³ria
A historiadora francesa Michelle Perrot, em āAs mulheres ou os silĆŖncios da histĆ³riaā, chama a atenĆ§Ć£o para a maneira pela qual as mulheres, historicamente, foram educadas para esconder a prĆ³pria vida. Isso fez, ao longo do tempo, que a prĆ³pria existĆŖncia feminina parecesse ahistĆ³rica, afastada dos grandes acontecimentos do mundo. “No teatro da memoĢria, as mulheres saĢo uma leve sombraā, afirma Perrot, jĆ” que a narrativa histoĢrica tradicional praticamente exclui a figura feminina. Em Ditlevsen, no entanto, o exercĆcio de rememorar coloca a autora, mas tambĆ©m toda uma camada social, como participantes e integrantes da realidade. O olhar, dessa vez, estĆ” sobre uma mulher que percebe todas as delicadezas de uma vida Ćntima e renegada dos holofotes, mas que tambĆ©m anseia por outro tipo de reconhecimento e outro tipo de vida, aquela que era tradicionalmente mais ligada aos homens.Ā
Os trechos ligados aos dois abortos que a autora faz, no livro, sĆ£o especialmente tocantes justamente por isso. Da mesma forma, os relacionamentos que Ditlevsen teve, com atenĆ§Ć£o especial para as primeiras experiĆŖncias sexuais e tambĆ©m as expectativas que tinha em relaĆ§Ć£o aos homens – e como hĆ” uma distĆ¢ncia de uma parceria verdadeira, que Ć s vezes ela tambĆ©m resolve descumprir.
PrecursoraĀ
A āTrilogia de Copenhagenā pode parecer uma histĆ³ria inacabada, nos livros, e que termina tambĆ©m abruptamente, na vida. As pĆ”ginas ajudam a jogar luz sobre o que aconteceu e o que poderia ter sido diferente – talvez tambĆ©m para a prĆ³pria autora. Mas a narrativa estĆ” longe de ser finita, ainda que tenha este recorte temporal curto, jĆ” que as questƵes trazidas por ela sĆ£o ainda tĆ£o atuais e os dilemas tĆ£o intrĆnsecos ao ser humano. Talvez por isso a autora lembre tanto escritoras atuais, como Elena Ferrante, Annie Ernaux e ainda Sylvia Plath, e seja admirada por tantas outras escritoras mulheres. Se foi finalmente traduzida e publicada no Brasil, mostra que hĆ” algo vivo e que permanece, como o cheiro da infĆ¢ncia do qual Ć© impossĆvel se desvencilhar, mesmo depois de muito que as pĆ”ginas finais jĆ” foram escritas.
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