Cidade imaginária


Por Raphaela Ramos

27/05/2012 às 07h00

De mãos dadas, cidade e afeto jamais interrompem a travessia. Ela, apressada, modifica-se a todo instante, interessada no futuro. Ele, arrastando pesada mala na qual guarda o passado, segue atrás, disposto a aconselhar a parceira. A partir dessa relação, por vezes equilibrada e por vezes caótica, surge um lugar existente apenas na memória e nas conversas das pessoas. Ao acessar esses arquivos, o morador da cidade faz referência a pontos que já se foram. "Vamos nos encontrar ali perto do Veneza?", dizem muitos juiz-foranos, fazendo menção ao cinema que ficava na Avenida Rio Branco, próximo à Rua Espírito Santo. Afinal, que espaço é esse, distante do mundo concreto e exclusivo das lembranças de quem vive por aqui? Para homenagear Juiz de Fora pelo seu 162º aniversário, comemorado na próxima quinta, a Tribuna garimpou endereços que ficaram para trás, mas não deixaram o imaginário local.

Em entrevista nas ruas, aparece de tudo, da Capela do Colégio Stella Matutina ao MacDonald’s do Calçadão. Segundo o professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Júlio César Sampaio, que já atuou na UFJF, cada geração estabelece determinados ícones em seu convívio com o meio urbano. "Não é preciso que haja valor artístico, basta que o elemento sirva de referência para aquela sociedade." Conforme Sampaio, é por meio desses pontos que os habitantes mapeiam mentalmente a cidade. Para Euler de Siqueira, professor do curso de turismo da UFJF, essa construção é feita coletivamente e se renova de tempos em tempos. "Nós também nos apoiamos nas vivências dos outros", explica, acrescentando que cada sujeito, com sua perspectiva individual, contribui para a ideia geral do grupo. O acadêmico observa que os jovens, talvez, tenham esse "dialeto" mais afiado, pelos vínculos constantes em tribos. "Os mais velhos atualizam menos essa memória que vai para o dia a dia. É preciso uma rotina para que ela se mantenha."

A jornalista e professora da Faculdade de Comunicação da UFJF Christina Musse separa a bagagem coletiva em duas. A primeira, mais recente, é aquela que nos faz marcar um encontro em frente a um prédio que já não está lá. A outra, mais distante, revela nosso afeto pela história. Às vezes, o indivíduo sequer passou pela narrativa, embora a valorize. "A identificação pode surgir de livros, conversas, fotografias." De acordo com Christina, só é possível gostar do que se conhece. Assim, a cidade que sobrevive nos pensamentos e na fala do juiz-forano é aquela que ele respeita. Enquanto isso, o mundo segue em transformação. A professora destaca a política desenvolvimentista dos anos 1960 para constatar a progressiva descaracterização local. Para ela, é preciso "contar" o município para as novas gerações, dando ênfase aos movimentos anônimos, a fim de resguardar as trajetórias. "Com o tempo, a sociedade civil foi à luta. Tivemos a campanha ‘Mascarenhas, meu amor’, que desembocou no Centro Cultural Bernardo Mascarenhas."

Distante dos marcos oficiais, a rotina de um lugar o personaliza. Muitas vezes, é a memória oral a responsável pela afinidade do sujeito com o solo onde vive. Segundo Júlio César Sampaio, o comportamento estranho de um cidadão, por exemplo, pode chamar a atenção para sua casa e incluí-la no imaginário coletivo. Dessa forma, ainda que a edificação seja derrubada, continuará passeando pelos diálogos. Esse é o caso da residência que ficava ao lado do Cine Excelsior, na Avenida Rio Branco. "Quando criança, achava que ela era mal-assombrada. Gosto de chamá-la de casa da bruxa", diz o ator Tom Brynner, 24 anos. Na visão de Sampaio, tais localizações são palcos onde se desenrola a vida das pessoas, em um território que vai além do círculo familiar. Para ele, o Cine Veneza, citado no início do texto, representa os hábitos de uma geração, assim como o Raffa’s Club e a loja de discos Bilbox (ambos na Galeria Pio X). Representantes de tais tribos – completa o acadêmico – entendem-se e dão importância a determinados espaços que passariam despercebidos aos olhos estrangeiros, a não ser que haja valor histórico e artístico.

O professor da Faculdade de Letras da UFJF Gilvan Procópio Ribeiro conta que ao indicar a Garganta do Dilermando a um amigo de fora, este não reconheceu a referência à parte inicial da Avenida Rio Branco, que ganhou por lei o nome do prefeito Dilermando Martins da Costa Cruz Filho. "Trata-se de uma ‘língua’ local." Utilizando esses códigos, muitas vezes, o professor se pega mencionando o Bar Redentor (esquina da Rio Branco com a Rua Espírito Santo), a livraria Zappa e a Galeria de Arte Celina (ambas na Galeria Pio X).

Como assevera Gilvan, Juiz de Fora sofreu intenso processo de metamorfose desde que ele chegou por aqui, na década de 1960. De acordo com Christina Musse, é impossível cristalizar a cidade. Entretanto, o processo de identificação e pertencimento se faz fundamental para que o respeito à memória apareça, em um movimento híbrido e saudável. Na opinião de Gilvan, o fato de o município ser um lugar de passagem para estudantes e trabalhadores o leva a mudanças constantes. "Antigamente, o Calçadão era cheio no domingo de manhã. Hoje, fica deserto", compara. Em compensação, existem muitos cidadãos interessados em manter vivo um percurso que chega ao 162º ano. Conforme Euler de Siqueira, devido a essa dualidade, são criadas "inúmeras cidades imaginárias, marcas que se sobrepõem". 

 

Sede de memória

A cor, o cheiro e o gosto do passado costumam nos fazer pensar que ele é sempre mais especial que o presente. Para elucidar, Christina Musse lembra o filme "Meia-noite em Paris", de Woody Allen, no qual os tempos que se foram, para as diferentes gerações, mostram-se encantadores. Esse afeto, do qual se esquivam as lembranças ruins, permite que a professora tenha saudades do Restaurante Faisão Dourado e chegue a querer notícias de um garçom amigo. "Vivi importantes momentos da minha vida no Faisão. Quando ele acabou, ficou um vazio, mas não comentamos essa perda", lamenta, admitindo que ainda usa o restaurante como referência. Da mesma forma, habita o vocabulário de Christina o Palácio Episcopal (onde hoje está o Empório Bahamas). Uma construção representativa para Euler de Siqueira é o Colégio Magister. "Vi quando as máquinas o derrubaram e me lembro dele quando passo na Rua Braz Bernardino." A respeito das impressões sobre o passado, Euler afirma que elas nunca serão cópias fidedignas, mas sim recortes individuais e coletivos.

Em seu livro "Os anos 40", a escritora Rachel Jardim transforma porcelanas, retratos e casarões em personagens. Segundo Christina, nesse terreno de delicadezas, também estão guardadas as referências que não existem mais. Como enfatiza a acadêmica, tal contato contribui para o respeito e a gentileza com o meio urbano, ainda que seja um desafio lutar contra a chamado desenvolvimento. "Os lugares da realidade estão se acabando, por isso os indivíduos vêm matando a sede de memória de outras maneiras, como a criação de grupos no Facebook e de blogs que postam fotos antigas."

De acordo com Euler, a memória também é algo que o sujeito traz presente em seu corpo ao atualizá-la caminhando pelas ruas. Nesse caso, ela vai depender da classe social. Citando José Magnani, da USP, o professor comenta que o uso dos pontos pelas pessoas determina cidades específicas. "Trata-se de pensar a apropriação do espaço por parte dos atores sociais que os ressignificam." Assim, é curioso pensar quais lugares ainda entrarão na mala do afeto. Gilvan Procópio arrisca um palpite: "o Bar do Bigode".

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