Filmes exibidos na CineOP reverenciam importantes nomes do cinema brasileiro
“Peréio, eu te amo” e “Othelo, o Grande” contam a história de atores que marcaram a produção nacional
São diversos os filmes na Mostra de Cinema de Ouro Preto, a CineOP, que têm o arquivo como fio condutor da contação de alguma história, principalmente daqueles imortais da cultura brasileira. Revisitar o que foi feito na história e utilizar na produção é também forma de preservação e de apresentar para as próximas gerações quem foi e o que aquele artista fez. Por ser um festival que, entre outras coisas, trata da preservação, esse tipo de filme do cinema brasileiro ganha ainda mais espaço no trabalho dos curadores.
Nesta 19ª edição, que aconteceu na cidade história mineira até a última segunda-feira (24), dois filmes em específico sintetizam esse trabalho e deixam registrado para o futuro artistas que marcaram a história do cinema brasileiro: “Otelo, o Grande”, de Lucas H. Rossi, e “Peréio, eu te odeio”, de Allan Sieber e Tasso Dourado. São filmes que contam as histórias de Grande Otelo e Paulo César Peréio a partir do resgate de filmes e entrevistas dos quais participaram durante os anos de dedicação à televisão, ao cinema e ao teatro.
O grande do cinema brasileiro
“Otelo, o Grande” ganhou sessão na praça e fez atiçar os olhares curiosos de quem passava pela Praça Tiradentes. Grande Otelo morreu há 30 anos. Órfão e neto de escravos, rompeu diversas barreiras e abriu as portas para os atores negros que viriam a seguir. Sua história se mescla com a do cinema brasileiro, principalmente porque Otelo fez parte de, praticamente, todos os movimentos cinematográficos que surgiram no país.
Lucas, o diretor do longa, conta que a partir do momento em que passou a se questionar o que era, de fato, o cinema negro, junto com outros colegas da área, percebeu que queria mesmo fazer um filme sobre Otelo. Aos 16 anos, ele foi apresentado à família do ator. Rapidamente, passou a se relacionar com seus filhos. “Convivia muito com a família e fui pegando algumas coisas deles. As coisas foram se arrumando.” Existia até um outro interessado, na época, em produzir um filme sobre Otelo. A família, no entanto, quis que Lucas fizesse exatamente porque percebeu que ele faria, principalmente, um recorte racial.
A princípio, a ideia era fazer um filme com depoimentos de pessoas próximas a Otelo. Lucas conta que chegou a gravar várias entrevistas. Mas, quase na montagem do longa, percebeu que tinha um outro caminho ainda mais interessante. “O que mais tencionou e virou a chave foi quando eu olhei para quem faltava filmar e cheguei à conclusão que seriam pessoas brancas (a falar sobre ele). E sempre tinha alguém que falava que o Otelo não se considerava negro. E, a partir disso, a gente começou a pensar em um outro filme, extrair das entrevistas o que tinha de mais político: a questão racial, o quanto ele sofreu, e a carreira foi interrompida pelo racismo. Descolar o Otelo da visão branca para um Otelo que defende essa liderança.” Para isso, Otelo contaria sua própria história.
Lucas identificou seus filmes e as várias entrevistas que Otelo deu. Montou de forma que seus próprios personagens conduzissem a narrativa. “Queria que fosse um filme em que esse cara contasse a vida dele, de forma que daqui a 20 anos as pessoas possam reconhecer ele. É o olhar dele. O filme, para mim, é muito mais um gesto que uma construção de uma identidade de uma filmografia minha. É para ele, não para mim”, afirma o diretor.
Peréio sendo Peréio
Por um outro lado, “Peréio, eu te odeio”, apesar de ser também um filme de arquivo, traz em sua essência o caráter mais marginal do ator que morreu em maio deste ano. Allan e Tasso tiveram a oportunidade de conviver com Peréio. E foi dessa relação, de ouvi-lo falando as maiores atrocidades e, ao mesmo tempo, discursos filosóficos, que surgiu a ideia de fazer o filme.
Como conta Allan, Peréio topou de início, mas com uma condição: “A única exigência dele era que ele não queria um documentário chapa branca. Ele falou que queria um documentário em que as pessoas falassem mal dele”. O que não foi muito difícil. Controverso, Peréio colecionou histórias problemáticas e hilárias, e são seus principais companheiros, esposas, filhos e diretores que contam sua trajetória, também intercalada com imagens de alguns filmes que participou que mostram que, até interpretando, Peréio só soube ser ele mesmo.
Ao mesmo tempo, “Peréio, eu te amo” conta a trajetória do próprio filme, que teve uma produção de 20 anos desde a primeira filmagem até seu lançamento, no último ano. Entre idas e vindas, o filme foi sendo filmado. Com pausas, ele retornou na pandemia, quando Peréio estava residindo na Casa dos Artistas, em São Paulo. É por isso que os próprios diretores dão entrevistas, contando tanto de histórias do ator quanto da execução do longa em si.
Tudo caminhou como deveria ser, e o filme estreou a tempo de ele se ver nas telas. De um jeito bem Peréio, Allan conta que, depois que ele assistiu, disse que poderia, agora, construir uma relação com o diretor – sendo que ela, de fato, já havia sido construída nesses 20 anos de produção, em que Allan o seguiu por toda a parte para a gravação.
“Foi um grande alívio ele assistir. Mas eu me martirizo pensando como teria sido legal se esse filme tivesse sido lançado há cinco anos, quando ele ainda estava bem”, confessa Allan, que ainda afirma que existe uma vontade de fazer uma continuação, de modo a apresentar ainda mais Peréio com o arquivo que ficou de fora. Mas é coisa para muito depois, segundo ele.
Rede de arquivos
Tanto Lucas quanto Allan, em suas falas, recuperam questões importantes no que diz respeito à preservação. Não ter, por exemplo, uma rede que reúna todos esses filmes brasileiros é um dos dificultadores desse processo de identificação e pesquisa, que envolve entrar em contato com as entidades que fazem esse trabalho, ou os próprios herdeiros, pedir autorização e, então, usar. Essa discussão, inclusive, foi pauta na CineOP, e a Secretaria do Audiovisual (SAv) já antecipou que essa rede está sendo construída.
Ambos ainda concordam que esses filmes não são definitivos e que ainda há muito o que se falar sobre Peréio e Otelo. Apontam ainda para a dificuldade de conquistar leis de incentivo para a produção dos longas, por mais que sejam nomes de impacto nacional. Os filmes saíram por dedicação aos próprios personagens principais. E os dois entram no circuito das salas de cinema ainda no segundo semestre deste ano.