Em JF, Philippe Valois fala sobre pioneirismo no cinema LGBTQIA+
Cineasta francês esteve em Juiz de Fora para acompanhar sua mostra ‘Cartografias do desejo’ e participou do Miss Brasil Gay
No Espaço Cidade, uma exposição que faz parte do Agosto Multicor mostra uma retrospectiva das edições do Miss Brasil Gay e da Rainbow Fest. Uma bandeira LGBTQIA+ ocupa o espaço do teto ao chão. Com o vento, ela abrange uma área ainda maior. Fica esvoaçante. Um homem de uns 70 anos chega com roupas que já mostram se tratar de um estrangeiro. A aparência entrega ainda mais quando ele saca uma filmadora. Ao seu lado, está um outro homem, mais novo, esse, certamente brasileiro, mas falando inglês. Ele, então, pergunta ao mais velho: “Glauber Rocha?”. Parece não entender, mas, simplesmente, grava enquanto o mais novo roda pela bandeira, fazendo caras de quem está à vontade sendo filmado.
Quando Marcelo do Carmo, Secretário de Turismo da Prefeitura de Juiz de Fora, chega ao lugar, falando francês, aquela cena faz sentido. Aquele com a câmera na mão é Philippe Vallois, considerado um dos primeiros cineastas dedicados à temática gay da França. Ao seu lado está Bruno Hilário, belorizontino responsável pela mostra “Cartografias do desejo”. Ela reúne as principais obras do autor, que veio à América do Sul pela primeira vez para ver seu trabalho sendo exposto em Juiz de Fora, também pelo Agosto Multicor, no Museu de Arte Murilo Mendes (Mamm), e em Belo Horizonte, no Cine Humberto Mauro. Mesmo a mostra já tendo saído da cidade, os filmes vão estar disponíveis do dia 26 de agosto a 26 de setembro, na plataforma cinehumbertomauromais.com, de maneira gratuita.
Bruno, quando se deparou com o cinema de Vallois, em 2008, ficou interessado pela forma como, já nos anos 1970, ele tratava do desejo de uma maneira até então inédita na França. O cineasta diz que isso só foi possível pela sua experiência com uma outra Paris, que não era aquela retratada nos filmes clássicos da época. Nascido em Bordeaux, foi se descobrir gay na Cidade Luz, onde foi fazer um curso de cinema – interesse que surgiu em sua vida ainda na infância, quando transformava caixa de sapato em câmera.
O caminho no audiovisual
Com 23 anos, Vallois lançou seu primeiro curta-metragem. Na França, naquela época, existia o que Marcelo traduziu como “clipes sexuais”: “aqueles filmes mais apimentados que passam em cinemas específicos”, explica o cineasta. No entanto, os diretores não costumavam assinar as produções. “Eu queria assinar. Por que não? Queria ter meu nome ali, e falando sobre o meu desejo. Queria contar a minha visão e a história dos gays, não aqueles que eram retratados no cinema, geralmente afeminados. Eu queria colocar e mostrar outra possibilidade de ser gay. Quando fui aos Estados Unidos, eu vi esse tipo de cinema, quis levar ao meu país, com meu nome. Meus amigos ainda questionaram se isso era certo. Eu estava maluco, e fui”, brinca.
Diante do embate, até pensou, durante uma época, em fazer filmes “héteros”. “Mas isso não encaixava com o que eu queria. A realidade é que eu amplificar o debate e levar isso para todos. Eu não quero me mostrar intelectual, como os outros cineastas franceses são vistos. Quero contar o que eu sinto, misturar o que é sexual, sensual e místico.” Prestes a fazer 74 anos, celebrados em 27 deste mês, ele relembra que, quando jovem, chegou a frequentar as passeatas da França que levantavam a bandeira da liberdade sexual. Mas essa, no entanto, não era sua forma de lutar contra preconceitos. Ele queria fazer isso através do audiovisual.
Além dos filmes de ficção, Vallois também dedica sua produção aos documentários, muitas vezes fazendo uma mistura entre o real e a invenção, passeando pelos dois modos. Exemplo disso é “Johan”, filme que estreou no Festival de Cannes de 1976. Realista, o curta-metragem, que colocou o cineasta como um dos primeiros a falar de sua sexualidade abertamente em produções na França, ainda faz elaborações com as imagens que colocam em xeque a separação entre fantasia e realidade.
Pelo desejo
Bruno, descobrindo e pesquisando a obra do francês, quis estar próximo dele. Foi quando os dois começaram a trocar correspondências sobre diversos temas. Ele queria ser o viabilizador de sua primeira vinda à América do Sul. Isso foi possível graças à parceria entre a embaixada francesa no Brasil e a Fundação Clóvis Salgado, que, com apoio da Prefeitura de Juiz de Fora, possibilitou a mostra também na cidade. “Vendo a produção de agora, vejo que o Vallois, lá em 70, já mostrava o que era o cinema independente, encontrando os modos de fazer. Era já o cinema de invenção. Mas, por isso também, ele ainda é pouco debatido em outros países.”
A mostra se chama “Cartografias do desejo” porque, de acordo com Bruno, o que Vallois faz em seu cinema é deixar o desejo guiar qualquer narrativa: “O que pauta os filmes é o desejo do encontro, que dá entendimento de outra realidade social e aproxima as diferenças. E isso enche a realidade com magia. Ele fala dele, mas de maneira universal. Acaba que ele encontra caminho para fazer, e o caminho é exatamente o desejo”.
Valois: jurado do Miss Brasil Gay
A mão imparável de Vallois continua gravando. Vez ou outra, ele passa para Bruno também gravar. “Agora, além de tudo, eu ainda vou aparecer no próximo filme do Philippe. Ele está com essa câmera na mão porque tem a pretensão de gravar sua estadia no Brasil e transformar isso em um filme. E eu já fico aqui, como pesquisador, imaginando o que pode sair disso”, diz Bruno. O cineasta ainda foi um dos jurados do Miss Brasil Gay, que aconteceu no último sábado (20). Ele desfilou na passarela com a câmera na mão. Partes desse evento também foram registradas para o futuro e possível filme.