“Como fomentadora, a Funalfa não pode executar a cultura”
Para a entrevista com o atual superintendente da Funalfa, Rômulo Veiga, a Secretaria de Comunicação da Prefeitura reservou uma pequena sala sem janelas no sexto andar do prédio da Avenida Brasil. Não haveria mesmo de combinar com o projeto e com o perfil do gestor que desde janeiro comanda as atividades do edifício tombado na esquina da Rua Halfeld com a Avenida Rio Branco. Rômulo, portanto, sugeriu transferir a prosa para o térreo da sede do Governo Municipal, tendo como paisagem o jardim do lugar. Queria oxigenar. E quer.
Jornalista por formação, o produtor audiovisual traz consigo a flexibilidade da publicidade e a sensibilidade da arte, características presentes num de seus mais belos trabalhos, a campanha “Jovem negro vivo”, da Anistia Internacional, para a qual dirigiu um vídeo de um minuto e 38 segundos. No trabalho, em defesa da visibilidade negra e periférica no Brasil, Rômulo mostra o frescor de um pensamento consciente de que comprometimento envolve, primordialmente, coragem.
E “comprometer-se” é um dos principais verbos na cartilha do novo gestor. Como desafio, Rômulo impôs-se o convencimento coletivo de que Estado e sociedade compartilham, cada um em sua medida, do projeto de fortalecimento da cultura. Em entrevista à Tribuna, quatro meses após assumir a pasta, o superintendente explica conceito e prática, demonstrando um processo que começa no gabinete para chegar até o público e a classe artística.
“Como superintendente de cultura, tenho que entender de política. A gente discute hoje um novo modelo de Brasil, o que é mais que necessário. Um tema fundamental para essa discussão é o pacto federativo, que é da Constituição de 1988 e determina que 70% do orçamento vão para a União, cerca de 20% vão para o Estado e uma média de 10%, para os municípios. Isso varia porque diz respeito ao Bolo Fiscal, que tem desde imposto às taxas. Há, então, uma concentração de renda na União enquanto a demanda cidadã é do município. Mais de cinco mil municípios brasileiros disputam um bolo superpequeno. É preciso reverter essa perversidade”, defende Rômulo, que se reuniu com o atual Ministro da Cultura, Roberto Freire, no dia 14 de março. Articular-se, portanto, é parte fundamental nos planos de oxigenação. Nada de salas pequenas e sem janelas.
Tribuna – O projeto do Corredor Cultural deste ano, comemorando o aniversário da cidade, indica novas práticas da Funalfa. Há um novo norte?
Rômulo Veiga – A ideia desse Corredor Cultural começou com os debates que fiz na época da transição. Sempre admirei o trabalho do Toninho (Dutra, ex-superintendente), uma pessoa com quem tenho um relacionamento ótimo, mas sempre fiz uma crítica, porque acreditava que a Funalfa ocupava o espaço do produtor. E isso criava problemas, porque não exigia um profissionalismo do produtor, que fazia tudo escorado na estrutura da fundação, que não é tão complexa, tem suas limitações e está cada vez mais asfixiada por um momento de recessão. E como as recessões são pendulares, sabemos que num momento de retomada, a Funalfa também amplia sua capacidade de fomento, mas para o artista, como única via, não é o suficiente para manter ações continuadas na cultura. Esse debate de como fazer a cultura ser efervescente de novo passa muito mais por empoderar os produtores do que por ocupar o espaço deles. O Corredor Cultural, quando abre para o credenciamento, convida pessoas para colocar ideias que a gente, enquanto produtora cultural, não teria.
Existe, portanto, uma quebra de paradigmas, não é mesmo?!
A Funalfa antes determinava os eventos baseada na produção que era vista, pegando contrapartidas da Lei Murilo Mendes e peças que tinham sido exitosas num passado recente, montando, assim, um calendário de eventos. Agora, abrimos credenciamento, e já posso antecipar que as propostas que temos recebido são muito mais criativas do que poderíamos imaginar. Já tem projetos como o de pessoas do movimento punk rock, sem nenhum tipo de estrutura envolvida, já que vão levar os amplificadores, até uma manhã nordestina, com um piquenique gigante com maracatu e tambor. Tem, também, projeto de evento de games, com o qual fiquei feliz, porque acho que a arte digital é pouco acolhida na cidade. Vamos receber a ideia, mas quem vai praticar será o produtor. É isso que imagino poder imprimir na Funalfa. Vamos empoderar os artistas, até para que alcem voos maiores.
Nessa postura há a sua visão sobre a cultura?
Acho que a cultura tem uma função em si mesmo, que é o registro de sua época como uma visão crítica da sociedade. Tem um fim em si mesmo, que é a áurea da cultura, de quando você assiste uma peça, ouve uma música, vê um quadro e é tomado por sentimentos complexos, que nada racionalizado consegue trazer. E tem uma função social. A cultura tem função de ser espelho, de mostrar para a sociedade como ela está agindo, quais são os pensamentos, na tentativa de que essa sociedade, ao se ver no espelho, faça as correções necessárias. Outro lado dessa função social, e que a gente precisa utilizar no momento que Juiz de Fora vive, é a do intercâmbio. A cultura tem o caráter de sensibilizar o outro sobre questões para as quais ele não quer enxergar. Hoje temos a felicidade de ver pessoas lutando por seus direitos, há muito negados. Há militâncias efervescentes: racial, das mulheres, cada vez mais empoderadas, direito ao corpo e direito à cidade. A cultura tem o dever de aparar as arestas que existem quando de um lado tem essas pessoas lutando por direitos que lhe foram negados e, de outro, tem a manutenção do “status quo” pelo “establishment”, das pessoas que não querem que as coisas mudem, que resistem ao pensamento do outro. Na Funalfa, o Gente em Primeiro Lugar leva para áreas marginalizadas projetos culturais, mostrando que existe outra perspectiva, profissional e humana. O marginal só vai à margem porque a sociedade não o acolheu, e a cultura é uma maneira de acolher, ouvir e ver esse sujeito.
Então haverá uma manutenção do Gente em Primeiro Lugar?
Acho fundamental criar o eixo social nas secretarias e nas fundações culturais, o que não é comum no Brasil. As secretarias de cultura, geralmente, são muito herméticas, não são transversais aos outros eixos de criação. O Toninho (Dutra), quando enxergou isso para a Funalfa, pela experiência na pedagogia, instituiu um programa que cresceu e hoje atinge quase cinco mil crianças.
O programa é perfeito?
Não. Precisa de alguns ajustes. É interessante que ele evolua para um Grupo de Teatro e para uma Orquestra do Gente em Primeiro Lugar. Para que essas formações sejam um vetor de receita, para o programa ter fôlego próprio e não depender apenas do município. Hoje ele é 100% dependente da Prefeitura. Isso é ruim, porque num momento em que reduzimos os gastos, priorizamos não cortar nada no programa, mas também não podemos expandir. Hoje há fundos federais, e criar uma cara para o projeto ajuda a captar essas verbas. Pretendemos transformar o Centro Cultural Dnar Rocha num centro de referência, aumentando a capilaridade nos bairros. E ao identificarmos um talento nos bairros, a criança será convidada a participar dos grupos de excelência.Essa questão tange a formação, que é uma demanda antiga da classe artística local. Conversando com o Conselho Municipal de Cultura, disse que se a Lei Murilo Mendes tivesse 10% voltados para a capacitação, muito provavelmente teríamos uma produção cultural com mais representatividade no cenário cultural. Quando digo isso não estou falando em capacitação conceitual, mas técnica, para que os artistas entendam que o que fazem é um produto, e ser um produto não é necessariamente ruim. Temos, na classe cultural, uma resistência a algumas palavras: falar em empreendedorismo, produto, profissionalismo, mercado é um problema. Pode ser um problema quando só pensamos pelo lado financeiro. Se você entender que empreendedorismo é quando você empreende tempo fazendo algo e percebe que a classe artística, em Juiz de Fora, quase em sua totalidade, tem profissões paralelas porque não pode empreender todo o tempo no que faz, entende que falta capacitar. Se você tem artistas talentosos, e esses artistas talentosos não conseguem, em sua grande maioria, viver única e exclusivamente do produto cultural que geram, você tem um “gap” (lacuna). É preciso entender os mecanismo de financiamento, aprimorar a classe como um todo. Tratando desde a execução de projetos, prestações de contas, compreensão e mapeamento de editais. A Funalfa precisa fazer e entregar esse mapa aos artistas. Precisamos fazer pesquisa de referência, para saber quanto as pessoas estão dispostas a pagar num tíquete de teatro, por exemplo.
Como fomentar sem executar?
As pessoas ligam doações da Lei Rouanet e da Lei Estadual a pessoas jurídicas, mas também há a possibilidade de fazer isso como pessoa física. Qualquer cidadão de Juiz de Fora pode doar 4% do que paga de impostos para projetos culturais. Primeiro, lógico, precisam existir mais projetos inscritos. É possível fazer um crowdfunding com anuência fiscal. Essa lógica nunca foi debatida aqui, e a própria Funalfa está tateando para fazer. Por isso, a primeira coisa que fiz foi organizar um setor pensante de projetos, elencando as prioridades da cultura da cidade, fazendo projetos e buscando na doação empresarial e cidadã os aportes necessários para, assim, conseguirmos potencializar nossas ações, que hoje dependem só dos recursos do Tesouro. Para eu ampliar minha ação, preciso de recurso extra, e só consigo se entender que o que estou pedindo para os artistas também preciso fazer enquanto instituição. Uma das coisas que a gente pretende fazer, e ainda está embrionário, é criar uma rede de benefícios: se a pessoa doa para a cidade, ganha descontos.
Mas não podemos nos esquecer de uma responsabilidade do Estado…
Aqui a Prefeitura cumpre. A meta constitucional é 0,6% do orçamento e a de Juiz de Fora é de 2%, mas isso tem um limite. Se dependermos só do município, nunca vamos conseguir ter um cenário tão efervescente quanto o dessas cidades para onde a gente viaja e se pergunta porque Juiz de Fora não é assim. O que temos é pouco porque é percentual, e quando cai a arrecadação, o dinheiro da cultura também cai. Isso cria uma prisão para as potencialidades da cidade.
Uma crítica frequente à Lei Rouanet é de que a isenção fiscal das empresas quando investem na cultura acaba por gerar uma cena artística refém do marketing. Esse não é um risco?
Por isso falo da arrecadação cidadã. Quanto o cidadão de Juiz de Fora paga de imposto de renda? Qual seria o valor caso ele deduza 4% deste valor investindo em esporte e cultura? Fiz esse levantamento. Se pegarmos, apenas duas faixas das pessoas que ganham de R$ 5.000 a R$ 10.000 e de R$ 10.000 a R$ 15.000, dariam R$ 34 milhões esses 4%. Hoje, o orçamento que engloba a Funalfa e o Museu (Mariano Procópio) é de R$ 16 milhões. Estamos falando, então, que só em doação de pessoas físicas conseguiríamos dobrar a receita da cultura da cidade.
Isso exige um trabalho de convencimento bastante grande. Está disposto?
Essa é a bandeira que levanto. Entendo que o serviço público é cíclico, e é bom que seja assim, porque é refrescante ter pessoas novas. Então, se eu puder deixar este legado, já irei me orgulhar: conseguir criar uma cultura em que o próprio cidadão saia de sua inércia e entenda que pode ser o grande patrono da cultura da cidade.
Enquanto isso não se torna realidade, quais são os projetos confirmados para 2017?
Não queremos descontinuar o calendário, então teremos o JF Foto 17, o Festival Nacional de Teatro, o Música da Cidade, e quero trazer projetos novos. Só posso falar que um é para discutirmos diversidade e outro é um festival multimídia. Queremos um festival de artes digitais representativo, mas deve ser para 2018, e penso em fazê-lo todo escorado em leis de incentivo, para crescer proporcionalmente ao convencimento social das doações.
Já existe uma data para a abertura do Teatro Paschoal Carlos Magno?
É difícil falar em data, porque elas já mudaram muito. Há uma parte técnica, de cabeamento de som, que não pode ser concluída a tempo, e atrasou a colocação do forro. A fachada e a iluminotécnica estão quase prontas. Falta concluir a parte da fachada, os pisos, os banheiros, e, em maio, eles vão se dedicar à plateia. O palco está pronto, muito moderno, e os camarins estão caminhando. A construtora fala em junho ou julho. Pretendemos, no Corredor Cultural, fazer uma visita guiada para as pessoas conhecerem.
Já existe um modelo de gestão a ser adotado pelo teatro?
Ele está sendo amplamente debatido. Precisa ser consciente. Existem inúmeras maneiras de fazer isso: pode ser de forma direta, por Organização Social, por convênio com associações, por uma parceria público-privada ou por cooperativa de artistas, o que é muito interessante. É importante conhecer todos esses modelos. Logicamente, quando o teatro abrir, será preciso operar pela administração direta para entendermos a operação e os custos dele. Fizemos um levantamento dos teatros do Rio de Janeiro, que tem 11 teatros municipais e dois são geridos de maneira direta, um por cooperativa e sete por organizações sociais. Evidentemente, em qualquer um desses modelos, será preciso priorizar o teatro para a produção local.
Em outra ponta está o Centro Cultural Bernardo Mascarenhas, que continua com sua ocupação limitada. Há previsão para reversão desse quadro?
Hoje optamos por esperar um novo acordo com os bombeiros. As adequações são demoradas, e ainda estamos em fase de realização de projeto. Ali é um espaço gigante, e estamos falando de um conjunto de edificações, um grau de complexidade gigante. Esperamos que até o aniversário da cidade consigamos liberar o espaço, fundamental para os eventos que devem ocorrer lá.
Em relação ao orçamento da pasta, há otimismo?
Esse ano tivemos um aporte maior, porque pudemos fazer o carnaval. Vamos seguir o cronograma como o do ano passado. Temos contingenciamentos em alguns pontos, mas procuramos por mais eficiência. Passamos por adequações em alguns departamentos, e ainda não tive problema orçamentário, o que depende muito da economia como um todo.
No mês em que se despedia da Funalfa, o ex-superintendente Toninho Dutra disse de sua surpresa e apreensão ao assumir a pasta e, com isso, a presidência do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural (Comppac). Como encarou esse desafio?
Encaro com responsabilidade. Assim como o Toninho, estou estudando muito. Como presidente do conselho, sou mediador, já que o Comppac tem uma estrutura com pareceres, e arquitetos e historiadores fazem parte de sua formação. O maior problema que vejo é que o conselho sofre muita pressão social: de um lado, estão as pessoas que gostariam que o tombamento fosse mais célere e capilar e, de outro, os que acham que o tombamento é uma restrição econômica. Concordo com as duas partes, e é preciso mediar. Temos uma lei em tramitação na Câmara dos Vereadores sobre a venda do potencial construtivo, que ameniza o atrito, já que a pessoa que tiver um bem tombado não vai perder o potencial econômico do terreno. O tombamento não é um fim em si mesmo, porque depois dele tem que prezar pela conservação e pela destinação social do imóvel, o que demanda investimento financeiro de grande monta.
Para concluirmos, sente identidade com a cena cultural de Juiz de Fora?
Já produzi curta-metragem (“VHS”) pela Lei Murilo Mendes, já fiz projeto de vídeo map para teatro, fui diretor do DVD “Teias”, do Rafa Castro, já trabalhei com o Dudu Lima. Também fui parceiro no empréstimo tanto de equipamentos quanto do meu material intelectual em inúmeros projetos do audiovisual. Conheço muito o pessoal do teatro, que sempre me pedia ajuda, e da música. Com algumas áreas, estou tendo meu primeiro contato, mas não sou um estranho para a cultura local. Teve um momento em que morei no Rio, por trabalho, e por isso me ausentei, mas tenho uma história e uma identificação forte com a cidade. E na vivência da cidade. Tenho uma coleção de tíquetes de cinema: a todo filme que vou assistir guardo o tíquete da sessão. Tenho o registro do Cinearte Palace de quando era Espaço Unibanco. Já perdi a conta de quantos tíquetes tenho. Na coleção tem de tudo, do meu gosto ao preço que pagávamos.