Outras ideias com Diego Zanotti
Os guerreiros Sioux, assim como outros povos indígenas norte-americanos, deixavam os cabelos crescerem por acreditar que os fios eram extensões do sistema nervoso e, portanto, conferiam maior sensibilidade quando respeitado seu desenvolvimento. Segundo a mesma tradição oral que preservou tal justificativa, os cortes representavam, em alguma medida, a morte. Aos 30, Diego Barata Zanotti Ongaro comprova a teoria. Nos quatro anos em que distanciou-se das tesouras, tornou-se, dia após dia, mais à flor da pele.
Veredas
O sertão em sua grandeza Diego descobriu, mesmo, em 2015. “Saí em 2015 para fazer o Caminho do Sertão. Foi ali que caiu uma ficha. Estava no consultório, com tentativas de me firmar, mas nem energia tinha para me fixar em algum lugar. Então, fui fazer o caminho, sete dias seguindo os passos do Riobaldo, de ‘Grande Sertão: Veredas’. Mandei uma carta, dizendo de minha vontade, e o projeto me selecionou dentre 50 pessoas, dos mais variados perfis, de diplomata a bailarino. Foram 180km, de lugarejo em lugarejo, dormindo no quintal da casa dos moradores, em barracas. É um processo muito humano. As cidades são muito estratificadas, hierarquizadas, e ali senti que as pessoas foram ficando cada vez mais parecidas. É um esforço físico de andar sob um sol de mais de 40 graus, em regiões áridas, num deslumbramento coletivo. Ali senti um amor absurdo. Estava diante de mestres, raizeiros, benzedeiras, parteiras, velhinhos que conheci. Antes disso, tinha acabado de fazer uma formação em reich, bioenergética, pulsão de vida, e sentia que era preciso fazer alguma coisa e me soltar das raízes. Um mês depois de voltar do sertão, larguei tudo e fui morar em Sagarana, uma vila de 400 habitantes com muitos mestres. Aquilo me virou do avesso.”
Pico da Bandeira
“Às vezes olho para trás e me reconheço tão diferente. Isso me dá uma euforia. Onde vou parar? Cada hora estou diferente”, constata Diego, psicólogo e documentarista, cujo brilho nos olhos foi se intensificando quando descobriu ser a arte uma forma de compreensão do mundo, e ser a compreensão do mundo uma arte. “Vi um documentário com entrevistas de mestres sertanejos para falando sobre a Lua. Anos depois, vi um documentário chamado ‘Caminho da luz’, sobre peregrinos que andavam por sete dias no interior do Brasil. Entrei em contato e descobri que a peregrinação começava em Tombos, Minas Gerais, e terminava no Pico da Bandeira, no Espírito Santo. Uma rota antiga de tropeiros”, conta ele, que se inscreveu, em 2008, para fazer aqueles passos. Quase dez anos depois, fazia trajeto semelhante ao gravar “Gerais da pedra”, seu primeiro longa-metragem documental, em parceria com os cineastas Gabriel Oliveira e Paulo Júnior, prestes a ser lançado. “Repassamos alguns lugares onde esteve Diadorim, de ‘Grande Sertão: Veredas’ (obra de João Guimarães Rosa). Fomos ao Paredão de Minas (Buritizeiro), onde teve a batalha final, e pesquisamos que grande sertão é esse de hoje. É de virar do avesso.”
Sagarana
Distrito de Arinos, cidadezinha banhada pelo Rio Urucuia, um dos maiores afluentes do São Francisco e localizado ao Noroeste do estado, Sagarana é uma típica vila sertaneja. “Foi preciso criar minha vida ali. Plantar, colher, comer, ir na dona Maria pedir um polvilho. Como não tem assistência médica, quem cura são os benzedeiros ou raizeiros, e eu ia, e o problema passava”, recorda-se Diego, que viveu ali por um ano, chegando em setembro de 2015, com outras dez pessoas, e saindo quando a casa já havia se reduzido para três moradores – ele e mais duas fotógrafas, uma paulista e outra mineira. “Que sertão é esse, que temos a sensação de ser um buraco no Brasil e não tem nada disso? É um lugar totalmente preenchido, é de uma simplicidade e de uma abundância absurdas. Fui cuidado por aqueles seres que habitavam aquele lugarejo. Me permiti, na minha vulnerabilidade, viver a solidão e o medo, o vazio. Olhava do lado da minha casa, e era só um pasto”, diz, com um brilho nos olhos a confirmar todo o encantamento. Ao sair, regressou ao caminho da obra de Guimarães Rosa. “Fui ajudar na produção, ver outras pessoas se virando do avesso. Depois segui para a Chapada dos Veadeiros, para um encontro de cultura. Já tinha a disposição de olhar para o outro, escutar histórias, e aquele momento me fortaleceu. É uma honra ligar a câmera e escutar histórias como a de uma senhora que pariu sozinha o próprio filho. Como era parteira e não tinha ninguém para ajudar, pariu, cortou o cordão e fez tudo. É muito precioso encontrar isso”, entusiasma-se ele, que concluiu o mestrado em artes e conheceu o Coletivo Brasileirando, formado por artistas e pesquisadores prontos a registrar as riquezas imateriais do país. “Ali já estava completamente nômade. Quando larguei Sagarana, fui para a estrada. Tinha a câmera, um microfone, roupas e uma barraca. Foi e está sendo um dos momentos mais lindos da minha vida.”
Útero
Inicialmente voluntário e agora contratado pela comuna, Diego passou a registrar o lugar e as atividades, criando séries documentais, como as atuais “Imersão” e “Transcendência”, na qual estão os movimentos catárticos vividos no lugar. “A terapêutica tântrica não é só massagem, mas meditações vibracionais, para carregar o corpo de energia e estímulos. O corpo fica mais aberto, mais expansivo. Só aí cai a ficha de muita coisa, integrando corpo e mente. Existem vários processos nessa terapêutica, e um deles diz respeito aos genitais. Formei-me e sou residente, atendendo nessa linha e na linha do renascimento, que não é um trabalho de massagens, mas de respiração. A base é a respiração circular, sem a pausa entre a inspiração e a expiração. Chega a ser uma hora. Em 15 ou 20 minutos, o corpo entra num processo como se acessássemos outro portal, ficássemos do avesso. Muita coisa ancestral vem à tona. Tem gente que vai ao útero, reconhece questões do passado, com os pais.”
Rio Pomba
Em seu processo terapêutico, Diego retornou à Rio Pomba. Nascido em Juiz de Fora, mudou-se para o município vizinho com 1 ano e só regressou aos 17. Filho único de pais professores, gozou de uma criação, em suas palavras, de muita liberdade. “Ao mesmo tempo em que foi muito bom crescer numa cidade pequena – brincar em Rio Pomba era muito bom, com muita natureza por perto -, havia muita angústia. A adolescência foi mais caótica, e o que me salvou foi entrar na psicologia”, conta ele, que no quinto período fazia estágio no serviço de psicologia hospitalar do Centro de Terapia Intensiva (CTI) do Hospital Monte Sinai. “Aprendi muito naquela angústia”, diz o homem que encontrou sentimento semelhante ao sair da zona de conforto e conectar-se com o sertão que é retrato de um Brasil profundo. “As escolhas que fiz não passam pelo clássico. Talvez seja meu ascendente em escorpião que me leva para as curvas”, aponta o leonino. “O cinema no qual acredito hoje é aquele praticamente sem roteiro, consequência de um encontro ou situação, algo bem vulnerável”, comenta o diretor do curta-metragem ficcional “Entre parênteses”, sua única incursão pela ficção. Única? “A disposição para ouvir histórias sempre esteve na minha vida. A psicologia clínica é uma forma de mergulhar com o outro em narrativas. Para mim, todas são grandes ficções. Mas de qual eu me aproprio?”, questiona ele, que se virou do avesso para encontrar as respostas.