Os leitores que amavam Salander e Blomkvist
Seja no cinema, literatura, quadrinhos, TV ou qualquer outra mídia que imaginemos, os fãs sempre querem mais e mais dos seus personagens ou franquias favoritos. Enquanto no cinema, por exemplo, pode-se colocar Christian Bale ou Michael Keaton para usarem o uniforme do Batman, na literatura não é tão fácil assim, pois o autor morre, e ai de quem tentar ocupar o seu lugar. Mas até isso vem mudando, com fãs e herdeiros de espólios aceitando que novos autores criem histórias com personagens imortalizados por Agatha Christie (Hercule Poirot), Robert Ludlum (Jason Bourne) e Ian Fleming (James Bond). Caso mais recente é o da trilogia “Millennium”, do sueco Stieg Larson, que nem precisou esperar muito para que um conterrâneo seu, David Lagercrantz, fosse escolhido para escrever a assinar “A garota na teia de aranha”, continuação da série de livros que vendeu mais de 80 milhões de cópias em todo o mundo – motivo mais que suficiente para não deixarem a fonte secar, visto que o novo livro saiu com tiragem inicial de mais de dois milhões de exemplares nos primeiros países em que foi lançado.
Encomendar um novo livro a outro autor foi a solução encontrada pelos familiares de Larsson para continuar a série, pois o escritor e jornalista morreu em 2004, aos 50 anos, um ano antes do lançamento de “Os homens que não amavam as mulheres”, primeiro título da trilogia. Stieg Larsson até deixou alguns manuscritos prontos para um quarto livro, mas estes continuam sob posse da companheira dele, Eva Gabrielsson – que, como não foi reconhecida como viúva do escritor pela Justiça sueca, ficou de fora das negociações e, obviamente, não liberou o material que tinha em mãos. A solução foi convidar David Lagercrantz, jornalista de formação como Larsson e coautor da biografia do jogador de futebol sueco Ibrahimovic, que foi encarregado da missão em 2013.
Missão dada, missão cumprida – mas com algumas ressalvas. Um dos principais problemas numa série do tipo é a necessidade do novo autor precisar repetir o estilo e maneirismos do seu predecessor, para não sofrer rejeição do público. Neste ponto, Lagercrantz se sai bem, com o estilo simples, direto e jornalístico de Stieg Larsson sendo respeitado em toda a história. Quem tem o livro em mãos vai reconhecer os personagens imortalizados na franquia, as situações, e não vai querer parar antes de chegar à última página.
Outro ponto positivo é a história escolhida por David Lagercrantz para ser desenvolvida e dar continuidade a “Millennium”, valendo-se de temas como a espionagem promovida pela NSA (a agência de segurança dos Estados Unidos), o caso Edward Snowden, a crise no jornalismo e as novas tecnologias para entregar um thriller que não esquece de pegar pontas soltas do passado de Lisbeth Salander em uma trama aparentemente paralela de vingança.
Lisbeth Salander, poderosa e absoluta
“A garota na teia de aranha” mostra o herói (alter ego?) de Stieg Larsson, o jornalista Mikael Blomkvist, enfrentando uma crise em diversas frentes. A revista da qual é um dos donos, a “Millennium” passa por uma crise devido às baixas vendas, fuga de anunciantes e as pressões exercidas por um dos novos sócios, um grupo editorial norueguês. Além disso, suas capacidades de jornalista são colocadas em dúvida, sendo tratado como um “dinossauro” em tempos de internet e que há tempos não escreve uma reportagem marcante.
A chance de dar uma volta por cima surge quando um cientista sueco, prodígio na área de inteligência artificial, procura por Blomkvist para denunciar um perverso esquema de espionagem industrial que envolve inclusive a NSA, além de uma organização criminosa. O cientista, porém, é assassinado, e a única testemunha do crime é o seu filho, um menino autista. Sem que o jornalista saiba, seu envolvimento nessa trama internacional vai fazer com que seus caminhos cruzem com o da hacker e antissocial de carteirinha Lisbeth Salander, que havia sumido de sua vida há anos e terá papel importante no desfecho de todo o mistério. Diversos personagens, locais e instituições conhecidos dos leitores também aparecem no livro.
Nem tudo,porém, são flores e aquavita da boa em “A garota na teia de aranha”. Talvez inseguro por assumir as rédeas de uma franquia que não era sua, David Lagercrantz eventualmente se prende excessivamente a recontar e explicar fatos de conhecimento dos fãs da série, o que emperra a leitura. Há momentos, ainda, em que a preocupação em manter-se fiel ao estilo de Stieg Larsson torna a trama lenta, pesada, pois o “herdeiro” parece não ter a mesma habilidade em lidar com tantas tramas secundárias. O maior problema, infelizmente, reside em Lisbeth Salander, que sempre foi capaz de realizar façanhas extremamente engenhosas e complicadas sob a pena de Larsson, mas que com Lagercrantz praticamente se transforma em um John McClaine (o herói da franquia cinematográfica “Duro de matar”) de coturno, jaqueta, tatuagens e piercings.
Pesando as qualidades e defeitos na obra escrita por David Lagercrantz, “A garota na teia de aranha” ainda é uma continuação digna para a obra de Stieg Larsson, capaz de suprir a abstinência de muitos dos fãs da série “Millennium”. Mas fica aquela sensação que o original ainda é bem superior.