Herança de uma pérola

Cassiana canta, a sua maneira, sambas da mãe, como “Sorriso de um banjo”
Uma vez, quando limpava a piscina da casa, Jovelina, que pouco cantava fora dos palcos, soltou a voz. Cassiana, pequena, acompanhava a cena que nunca mais lhe saiu da cabeça. “De repente, ela cantou ‘Sorriso de um banjo’, e, ali, me dei conta do quanto ela cantava. Sem microfone, sem nada, descontraída, me marcou. Tenho essa imagem na cabeça todos os dias”, conta a única filha da sambista (os outros dois são homens), vitimada por um infarto em 1998, pouco mais de dez anos após ter conquistado o país como herdeira natural de Clementina de Jesus, abandonando, por fim, o trabalho como empregada doméstica.
“Raramente ela ouvia músicas em casa e pouco cantava. Quando não tinha shows aos domingos, gostava muito de assistir ao ‘Programa Silvio Santos’. Ela tinha um toque para decoração excelente, além de um humor muito bom”, recorda-se a herdeira daquela que compôs, com Arlindo Cruz e Zeca Pagodinho, “Bagaço de laranja” (“Fui no pagode/ acabou a comida/ acabou a bebida/ acabou a canja/ sobrou pra mim/ o bagaço da laranja”). “Ela ainda poderia estar entre nós, mas quando chega a hora não tem jeito. Era cardíaca e bagunceira. Muito comilona, já não bebia mais, mas sempre gostou de tomar um quente para abrir a garganta”, ri Cassiana, que participa da roda de samba “Conexão Rio Minas”, neste domingo, às 15h, na sede do Grupo Escoteiro Aymoré, ao lado dos cantores Valéria Lima, Ney Gerald e Allan Ylê, além do grupo Samba do Morro e do DJ Anael Guedes.
Um ano após se despedir da mãe, Cassiana foi convidada para uma homenagem póstuma. Ao subir no palco, foi incentivada a cantar. “Nunca tive a pretensão de cantar, mas gostava, ficava na porta do prédio com uns amigos cantando e tocando, aproveitando quando ela não estava, porque quando ela chegava na varanda, eu tinha que parar de cantar”, lembra. Sem os olhares de Jovelina, Cassiana pegou o microfone, ficou parada alguns minutos, sem saber o que fazer, até que entoou “Sorriso de um banjo” (“Sentindo um sorriso de um banjo dedilhado/ ver um samba sincopado só pra mim e pra você”). “O pessoal que estava lá sentou na beirada do palco e começou a chorar. Se lembraram da mamãe”, emociona-se.
‘Ela é incomparável’
Em 2005, quando foi convidada para o show de comemoração dos 20 anos do projeto “Raça brasileira”, o mesmo que lançou a Pérola Negra, em 1985, Cassiana Belfort viu seu nome ganhar força no meio do samba carioca. Não havia como trilhar outro caminho, se sempre esteve às voltas das rodas de samba. Ainda que não se lembre de quando moravam na Pavuna (da canção “Na feirinha da Pavuna/ houve uma grande confusão”), ela não se esqueceu da casa em Belford Roxo, onde passou a infância, e depois Madureira, Vila da Penha e Jacarepaguá. Também traz nas melhores lembranças uma mãe que era guerreira e fez da música seu maior troféu. “Gosto de tudo o que ela fez, mas tem uma, ‘Maria tristeza’, que me remete à própria história dela. Essa música me faz lembrar de quando ela ia para a Império Serrano (escola de samba), descia o morro para o desfile na ala das baianas e subia na Quarta-feira de Cinzas”, comenta.
Segundo a filha, a mãe não é uma sombra, mas um acalanto. “O nome dela me abre portas, e minha maior inspiração é ela. Me amarro em Maria Bethânia, Alcione é a mulher das galáxias, mas minha mãe é minha referência principal, não só como cantora, mas como mulher”, diz a dona de uma voz mais aguda, bastante diferente do timbre grave de Jovelina. “É complicadíssimo, uma loucura ser filha dela. Minha mãe tem um potencial que era só dela. Ela deixou um legado muito grande. Embora tenha tido uma carreira muito curta, até hoje falam dela. Temos muitas coisas em comum, mas também muitas diferenças. As comparações me entristecem, porque não somos iguais, ela versava, e eu não verso. Ela é incomparável. Sou filha, e ela, mãe. Ela foi, eu estou.”
Convidada pelo músico e compositor Mauro Diniz, amigo de Jovelina, a gravar um DVD, que espera lançar no próximo ano, Cassiana diz ir devagar, procurando seu espaço, que, com certeza, não desvia das pérolas maternas. “Gosto do estilo de música da minha mãe, sou mais do partido alto. Tento não cantar muito as músicas dela, mas não tem como. A galera pede. Adoro o Zeca, Alcione e Dona Ivone Lara. Vou degrau por degrau, justamente para colocar a minha cara”, pontua. E qual é a cara da filha que é, ao menos na fisionomia e na simpatia, a cara da mãe? “Quando gravou ‘Sorriso aberto’, mamãe gravou mais lenta, e eu canto mais para frente. Talvez essa seja minha cara, meu jeito.” Cassiana, na verdade, canta e ameniza a saudade. A Pérola Negra deixou outra joia.