Leonardo Piana estreia com livro “Sismógrafo”
“Sismógrafo”, da editora juiz-forana Macondo, apresenta Eduardo, personagem que precisa voltar à cidade onde nasceu e, com isso, revisitar sua própria história
Voltar, lembrar, perceber, estar em um estado passado. Sentir, sobretudo, o que era. Como em um álbum de fotografias, passar a página. Vez ou outra, analisar uma foto em específico, com atenção, o que já foi, e passou. Perguntar-se: como aquela criança cresceu? Eu já fui aquela pessoa? Ainda sinto o Edu, amigo de Clara e apaixonado por Tomás, em mim? Andradas, depois de tanto tempo, ainda guarda as mesmas sensações? São esses os questionamentos e a visita que Leonardo Piana faz em seu livro de estreia, “Sismógrafo”, lançado pela editora juiz-forana Macondo. Como um grande diário que mistura o presente e o passado, Leonardo dá voz a Edu porque, de acordo com ele, tinha que dar. O livro, selecionado pelo Rumos Itaú Cultural e vencedor do Concurso Nacional de Literatura Prêmio Cidade de Belo Horizonte, em 2019, nasceria de qualquer forma: “A história vivia em mim, a voz do Eduardo, o narrador, vivia em mim, a linguagem me atravessava. Era urgente escrever esse livro”.
Eduardo é uma criança de cidade pequena, no interior de Minas Gerais, daquelas que vivem soltas pelas ruas onde todo mundo conhece todo mundo. Sua mãe, a quem ele quer proteger na maior parte do tempo, ainda vive histórias problemáticas com o seu pai, que acaba, tempos depois, saindo de casa. Logo depois, vive outras histórias com outros homens. Edu vive tudo. Na escola, conhece Clara, uma menina nova na cidade, que, por isso, é desdenhada pela turma. Tomás só surge depois: um menino um pouco mais velho, que está no processo de querer sair da cidade pequena para estudar fora. Com ele, Edu descobre a sinestesia que é amar. E, por consequência, as violências mínimas do amor. Descobre, também, como uma cidade conservadora pode atrapalhar e moldar até o sentir.
“Olho para o rosto de todas as pessoas por quem cruzo e me pergunto se olham de volta para mim, se sabem que estou de volta a Andradas, que é este o lugar onde nasci, o único lugar no mundo para onde eu poderia ir. Mas elas não sabem.”
Voltar para entender
Tudo isso, na verdade, são as lembranças do Eduardo já mais velho, que, assim como Tomás, sai da cidade. Edu precisa voltar a Andradas e ficar, mais uma vez, no quarto que dormia quando era novo. Ele precisa passar pelo clube onde conversou pela primeira vez com Tomás. Precisa se reconhecer naquele espaço para entender como as coisas foram acontecendo em sua vida: o que muda e o que não muda nunca. Tudo isso, ainda, transpassado por pequenas coisas: a xícara de café que sempre tem de renovar na frente de um santo, o telejornal, o vizinho que enxerga da janela de seu quarto, a própria arquitetura da casa que permite o sol entrar. “É preciso lembrar para esquecer. É preciso voltar àqueles cenários, se misturar a eles, deixar que ajam sobre os personagens, para perceber o que permanece e o que é diferente, onde há reconhecimento e onde há desconhecimento. Pessoalmente, quando volto a Andradas, consigo encontrar a criança e o adolescente que eu fui, perceber coisas desse passado que vivem em mim, mas também perceber que sou agora outra pessoa”, diz Leonardo.
“Sismógrafo”, sendo o livro de estreia de Leonardo, acaba por apresentar, também, o que o autor quer dar voz. “Como homem gay nascido no interior, tendo sido também atravessado pela culpa e pela violência, nas suas dimensões mais ou menos sutis, era urgente escrever sobre esses temas. Narrar esses corpos e esses encontros é também um jeito de dizer: vivam.” Até porque, como ele mesmo acredita, toda ficção tem um ponto autobiográfico. Leonardo pensa que, assim como ele deu voz a Edu, Edu deu voz a ele. “Revisitar as minhas memórias e criar as memórias desse personagem acaba sendo um jeito, então, de caminhar junto.” O personagem permitiu fazer com que ele fosse ao mais profundo de sua história para que um outro alguém pudesse nascer.
Um jogo de memória
O caminho foi aberto para Leonardo a partir dos três personagens principais: Edu, Tomás e Clara. Uma imagem já estava construída. Aos poucos, outras foram se encaixando. E são imagens mesmo. É um álbum: “registro das catástrofes pessoais e coletivas”. O exercício do autor foi também de fazer com que o personagem olhasse para tudo o que acontece no mundo (como o atentado às Torres Gêmeas ou o terremoto do Haiti) a partir de uma cidade onde nada acontece. Leonardo, no entanto, diz: “O passado é um lugar cheio de ambiguidades”. E, nisso, Edu concorda, já que, em um momento, escreve que a memória é permeada por um jogo sujo. “Para mim, há nostalgia e repulsa nessas imagens, foi o que eu senti ao escrevê-las e que, imagino, o narrador do romance sentiu ao revisitá-las. É como se eu tivesse deixado algumas dessas fotografias em Andradas e trazido outras, que importam mais, comigo.”
“Um dia Clara e eu caminhamos pelas ruas do meu bairro, subindo e descendo morros, lado a lado, a cabeça levantada para um céu vasto. Limpos. Ela me disse sempre que passo em frente a essa casa e escuto esses pássaros todos cantando me dá uma agonia, sabe? Então fui eu que respondi sei, sim, eu moro aqui, Clara. Naquele dia, pensei que talvez minha agonia não viesse de dentro da casa ou de Andradas, mas do canto dos pássaros. O sangue subiu ao rosto dela, depois veio também ao meu rosto, e eu gostei que fôssemos assim tímidos daquela vez. Desculpa, ela disse, e eu disse tudo bem.”
Grito de Edu e Leonardo
O livro é uma viagem entre o conhecido e o desconhecido. Um passeio pela própria história. Mesmo que seja quase um diário, por contar detalhadamente o que foi e o que é, uma forma íntima de se expor, a voz de Edu é universal. “Na diferença ou na semelhança, as histórias têm o poder de comunicar sobre estarmos vivos. E isso é poder muito.” Para Leonardo, “Sismógrafo” deu voz ao que é urgente: desejo, sexualidade e culpa em uma cidade no interior, onde ele mesmo nasceu. “Além de tentar encontrar uma medida para esses temas, de registrá-los, o ‘Sismógrafo’ – com toda a sua concretude, enquanto objeto – também é um grito, meu e do Edu: estamos vivos, amamos, resistimos.”