Tupynambás: memórias que ecoam

Diante do provável desaparecimento do campo e do ginásio do Baeta, produtores, músicos e fãs relembram histórias vividas ali, principalmente nos anos 90


Por Cecília Itaborahy, estagiária sob supervisão de Wendell Guiducci

19/12/2021 às 07h00- Atualizada 20/12/2021 às 14h36

Tupynambás
(Foto: Aelson Amaral)

Um campo extenso. Mais ou menos uma vez a cada dois meses ele era ocupado por uma multidão de jovens e adolescentes que desfrutavam a liberdade. O tempo era outro, é claro. Alguns falam que, na época, os shows que aconteciam no campo ou no ginásio do clube Tupynambás eram o único tipo de entretenimento que reunia tanta gente. Eram, em média, 20 mil pessoas, não só de Juiz de Fora, que se uniam, bem agarradas, para assistir a apresentações de músicos lendários ou que começavam a despontar na cena nacional. A dimensão era a seguinte: se tocava no rádio, logo em seguida fazia show no Tupynambás. Na época, final dos anos 1980 até meados dos 90, o rock nacional atingia o auge. Foi por causa desse campo, prestes a ser vendido para a construção de um empreendimento imobiliário – seguindo a trajetória de outros clubes na cidade -, que muitos tiveram acesso a vários artistas. A grama, que um dia foi pisoteada, em breve será suplantada pelo concreto. Mas as memórias do que foi vivido, essas não se apagarão.

“Pode colocar na sua matéria: o Tupynambás, em termos culturais, marcou a geração dos anos 90”, pede Aelson Amaral, fotógrafo que, na época, foi responsável por registrar a maioria dos shows que aconteciam no campo. Interessado em eventos, ele pediu para fazer parte da história fotografando no clube. Esse olhar, ele mal sabia disso, acabou por guardar muita coisa – mais na cabeça que em fotografias. Ele lembra que, na época, ainda com as câmeras analógicas, só podia fazer, no máximo, 50 fotos. Isso porque ele andava apenas com dois filmes, já que o custo era alto e não dava para exagero. O olhar tinha que ser preciso. Por isso, com tanta gente agarrada, ele já ia preparado para registrar, sobretudo, aqueles flagras: contar as histórias com uma máquina. A maioria das fotos da época estão guardadas por ele, que nem ousa em esquecer isso tudo. “Eu acho que é essa a minha contribuição para a cultura de Juiz de Fora.”

Aelson, que hoje é aposentado e vende antiguidades, recorda que tinha de chegar mais cedo. Percorria toda a extensão do gramado antes mesmo das pessoas chegarem, a não ser os seguranças. Depois de andar e esperar, ia ao camarim tirar foto dos artistas com os organizadores. Mas ficava mesmo em terra firme durante as apresentações. Gostava mais disso. O contato com os artistas era curto. Aelson até que tem, sim, algumas fotos de sua filha com alguns deles, fotos mais posadas, mas era na multidão que exercia a profissão. “E era muita gente. Mal dava para andar”, ele conta. O desafio era fazer caber, em uma foto, a exata dimensão dos eventos.

Tupynambás
Fernanda Abreu em show no Tupynambás (foto: Aelson Amaral)

Ninguém esquece dos Mamonas

E era muita gente mesmo. A impressão é a de que a maioria dos adolescentes e jovens de Juiz de Fora, em uma época com leis menos rígidas, frequentavam o lugar. O Tupynambás foi uma das únicas possibilidades de conhecer e ouvir artistas maiores. Nos relatos, algumas coisas são unanimidades: a primeira é que, de fato, os shows marcaram uma geração; a outra é a quantidade de gente que ia; mas a que vem à cabeça de maneira recorrente é o épico show dos Mamonas Assassinas, fotografado por Aelson. “Foi um dia dramático. Uma bagunça. Tinha um lamaçal. A minha filha foi e só foi salva porque eu emprestei minha capa de chuva para ela. Tem as fotos do pessoal cheio de lama. Foi uma bagunça boa”, recorda.

A atração foi marco para a região toda. Leonardo Bonato Félix, professor da Universidade Federal de Viçosa (UFV), nasceu em Ubá. “Houve vários episódios bacanas, as primeiras liberdades, episódios que não vou esquecer nunca. Mas um show que foi fantástico foi o dos Mamonas Assassinas”, ele diz. O show aconteceu em 13 de dezembro de 1995. Leonardo era estudante do ensino médio na época. Para conseguir ir ao show, tinha que esquematizar quase que uma fuga para vir a Juiz de Fora. Era assim: ele falava que ia sair de casa, pegava o ônibus para a cidade, ia para uma república fazer a “concentração” antes do show e todos os amigos, juntos, iam andando para o Poço Rico. Eles curtiam o show, voltavam para a república, e, no outro dia, cedo, pegavam o ônibus para Ubá. Sempre deu certo. Só no show do Mamonas que não.

Tupynambás
Emblemático show do Mamonas Assassinas (foto: Aelson Amaral)

Uma lamaçal que valeu a pena

Choveu muito. O campo virou lama. Todos se sujaram inteiros. Bonato precisou chegar do show e lavar toda a roupa, porque só ia com a roupa do corpo. “Obviamente não deu certo. Imagina! Aquela turma de adolescentes na rodoviária, com uma cor marrom, a gente pisava, o barro saía. Ainda foi complicado convencer o motorista a deixar a gente voltar naquela situação, mas fomos e voltamos com saúde”. Ele lembra que, em casa, o atrevimento teve consequência. Mas, por fim, valeu a pena.

O trajeto da maioria dos jovens era parecido: reunir-se em algum lugar e ir andando juntos para o campo. O médico Luiz Dellano Andrade também estava naquele show memorável. “Foi uma bagunça organizada, eu diria.” Dellano lembra que, por causa do barro, ele teve que jogar seu tênis fora. Tanto para ele quanto para Bonato e Aelson, o show dos Mamonas foi uma espécie de Woodstock juiz-forano. Isso por causa da liberdade que todos sentiram na noite, junto dos amigos. Bonato atribuiu isso à forma como os jovens viviam naquela época: “Como não havia tantas fontes de entretenimento como hoje, o que a gente mais prezava era fazer as coisas do nosso jeito. A gente pensava: ‘vamos fazer do nosso jeito, escrever a nossa história, e, se tiver que ser desse jeito, vamos embora e depois a gente resolve'”. Tudo era, realmente, diferente. Por isso, a sensação era de catarse.

Mas não foi só esse show que marcou. Cada um, à sua maneira, liga fatos pessoais com o show que teve na época. Dellano, por exemplo, nunca esqueceu de um show do Jota Quest na época que passou no vestibular. Ele lembra de ver um pessoal com a cabeça raspada, aproveitando ao máximo. Lembra, também, da época que viu o Skank. O que, para ele, contribuía para que ficasse lotado era que os ingressos eram acessíveis, assim como o local. Além disso, dava para gastar pouco. “Só vendia cerveja de lata. A gente saía com pouco dinheiro e sabia que a curtição era garantida.” Os shows deixaram frutos em sua vida até hoje, já que, ele conta, no Tupynambás fez muitas amizades. E é isso que fica.

Tupynambás
Show do Skank no Tupynambás (Foto: Aelson Amaral)

Da calçada para o palco do Tupynambás

Para a maioria, o que marcou foram os shows nacionais, no ginásio ou no campo. Por lá passaram, além dos já citados, Barão Vermelho, Kid Abelha, Titãs, Jorge Ben, Roberto Carlos, entre diversos outros. Antes mesmo de fundar a banda Muamba, o cantor Eminho frequentou muitos desses shows. “Eles sempre foram um charme a mais pra gente.” Em uma dessas vezes, ele diz que encontrou, frente a frente, Daniela Mercury, em um dos corredores. Muitas outras, ele nem precisou entrar para aproveitar. Ficava do lado de fora vendo a movimentação. Mas depois que virou músico, subir ao palco do Tupynambás passou a ser um sonho. “A gente via uma galerona indo para lá e eu pensava: ‘pô, minha banda podia tocar ali e essa galera toda podia ver meu show, eu ia ficar muito realizado’. E não é que aconteceu?”

TUPYNAMBAS Maumba Tupynambas
Banda Muamba foi uma das poucas da cidade a subir no palco do Tupynambás (foto: Arquivo pessoal)

O Muamba foi uma das poucas bandas de Juiz de Fora que conseguiu isso. Eles tinham acabado de lançar um álbum, já na época que moravam em São Paulo. Fazer o show no ginásio do Baeta foi a realização de um sonho para a banda toda. “Acho que um dos melhores momentos que passam pela minha cabeça é da multidão indo pro show do Muamba no ginásio. Juiz de Fora inteira estava lá. Tinha muita gente. Umas 5 mil pessoas, as arquibancadas cheias, a pista cheia”, ele lembra. Foi para eles a oportunidade, também, de rever a família e os amigos. Por isso, uma verdadeira festa. Outro grupo local que tocou no Tupynambás, mas no campo, foi o já extinto Dinossauros Barrigudos. Eles foram a única atração “caseira” do lendário Geraes Rock Festival, que em 1996 trouxe à cidade um quinteto de peso em franca ascensão: Chico Science & Nação Zumbi, O Rappa, Planet Hemp, Raimundos e Pato Fu.

Lugar de experimentações

Por trás de todas as histórias, digamos, públicas, havia os produtores que, nos bastidores, assumiram a responsabilidade de trazer shows, movimentar a cidade e, consequentemente, alterar um pouco a ordem que existia em Juiz de Fora. Serjão Evangelista conta que a história, na verdade, foi um processo. Produtores culturais e empresários, antes do Tupynambás, faziam shows em ginásios da cidade, mas eles acabaram ficando pequenos. O jeito encontrado foi aumentar o espaço. De acordo com ele, o clube Sport era difícil porque, constantemente, tinha atividades esportivas. Já no Tupynambás, não. Deu-se início a essa temporada marcante.

Serjão lembra de ter feito shows de Lulu Santos e da dupla Sandy e Junior, entre outros. Mas o que ele nunca esquece foi um no salão, na área social do clube. A produção do Milton Nascimento queria um show dele aqui para poucas pessoas, mas não achava o local adequado. Serjão ficou por conta de resolver a questão e, por acaso, viu aquele salão montado para uma formatura. Ele lembra que as conversas com a diretoria do Baeta eram fáceis. Por isso, conseguiu manter aquela montagem e fazer o show. “Foi um dos shows mais bonitos que eu já vi, e olha que, agora, eu faço show dele no Cine-Theatro Central.”

Serjão conta que aprendeu a produzir no Tupynambás. Foi mesmo uma grande escola. “Lá a gente podia fazer e experimentar de tudo.” Os próprios músicos acabavam fazendo a divulgação do espaço e, por isso, Juiz de Fora passou a fazer parte do roteiro desses grandes artistas. E Serjão até tinha um método para saber se ia encher. Os ingressos eram vendidos no Calçadão da Rua Halfeld. Todo mundo via como estava a movimentação das vendas, inclusive os ambulantes, que iriam para a porta do Baeta fazer um dinheiro. “Dias antes do show, a gente passava pelo clube. Dependendo da quantidade de ambulantes, a gente sabia se ia encher. Sempre deu certo”, ele garante, rindo.

Tupynambás
Octávio Fagundes com É o Tchan (Foto: Aelson Amaral)

Escola de fazer eventos

As realizações no Tupynambás eram praticamente divididas entre Serjão e a Front Produções. Octávio Fagundes, um dos sócios, se refere aos shows como apoteóticos. Ele também aprendeu a produzir fazendo evento lá. “Juiz de Fora nunca tinha tido nada como aqueles shows.” Em uma época sem celular, produzir um evento para 20 mil pessoas era adrenalina pura, de acordo com Octávio, sócio-proprietário também do Grupo Privilège. Mas ele afirma ter tido ousadia para fazer coisas daquele tipo, como, por exemplo, o show dos Mamonas Assassina. “Para quem não viveu, fica até difícil imaginar como era. Mas o Tupynambás era o ponto de encontro. A gente, nessa época, parecia ser mais rústico, por isso esse tipo de show dava público.”

Era quase impossível imaginar, mas aconteceu: em um show de Lulu Santos, Octávio conta que teve de erguer um segundo palco para as bandas que dividiriam a noite com ele: O Rappa e Jota Quest. O empresário relembra que, na hora do show, o vocalista Falcão criticou Lulu por causa daquela exigência e atiçou o público contra a veterana estrela da noite. A plateia, por sua vez, comprou a briga. Esta é apenas uma história daqueles anos efervescentes à beira do Paraibuna, mas não faltam outras tantas.

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Lulu Santos já fez vários shows no Tupynambás (foto: Aelson Amaral)

A febre teve fim

O declínio do Tupynambás enquanto meca de grandes shows na região foi gradual. Aconteceu que o Tupynambás, por incrível que pareça, foi ficando pequeno. Serjão conta que, a partir de determinada época, como muitos menores entravam, eles tiveram que alterar o espaço. Por determinação do então Juizado de Menores, um cercadinho foi feito para separar o público que não podia beber dos que podiam. Os produtores, então, passaram a vender menos cerveja, que era o que mais dava lucro. As leis, também, foram ficando mais rígidas. O próprio rock, atração principal, foi decaindo para dar lugar ao sertanejo. Aelson lembra de um show do Zezé di Camargo e Luciano, já no final, em que algumas mulheres invadiram o camarim dos cantores e pularam em Zezé. “Foi muito esquisito.”

Consequentemente, o Parque de Exposições, bem mais amplo, se tornou o novo point dos shows para multidões. Mas o equipamento público também acabou decaindo, como um ciclo da noite. Serjão afirmou que se cansou desses shows grandes e decidiu ficar no Cine-Theatro Central. Octávio, que diz ter sido “mordido” pela vontade de viver da produção de shows lá no primeiro Rock in Rio, acompanhou todas essas fases e continua, ainda hoje, trabalhando com eventos. Para ambos e tantos outros, o Tupynambás foi um marco. E, mais ainda, representou um tempo de descobertas e aprendizados que não serão esquecidos.

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