Manual sinestésico
Um som evoca uma cor. Uma imagem desperta para uma música. Do cruzamento de sensações surgem obras das mais diversas áreas. Inspirado nos movimentos de uma locomotiva, o compositor Villa Lobos criou O trenzinho do caipira, que integra a peça Bachianas Brasileiras nº 2. Já o francês Henri Matisse partiu da sonoridade para pintar La danse, na qual reproduz com precisão o ritmo de cinco dançarinos em ação. Incluída na programação do 24º Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga, a exposição O que você vê é música, em cartaz na Galeria Renato de Almeida, do Centro Cultural Pró-Música, se debruça sobre essa estreita ligação entre as artes, apresentando obras criadas por professores e alunos do Instituto de Artes e Design (IAD) da UFJF. Essa articulação das artes visuais com a música já vem sendo estudada há muito tempo, aponta o professor Ricardo Cristofaro, que divide a curadoria da mostra com o Coletivo Tribêra, composto por alunos do instituto.
Apesar de já estar presente no universo das artes, a relação foi pesquisada e sistematizada pelo pintor e músico suíço Paul Klee, que denunciava a conexão entre a composição musical e a composição pictórica. Outros termos, como harmonia e contraste, também revelam o vínculo. Com o olhar voltado para essas questões, os nove trabalhos que compõem a exposição se atêm a variados aspectos, como formatar um manual de sensações que levam a outras sensações. Os artistas ficaram muito livres para trabalhar nessa direção e de forma atemporal. Não havia nenhum imperativo de um recorte histórico, comenta Cristofaro.
Baterias, sopranos
e pedras
Uma manivela fixada numa pequena caixa com uma pedra em cima. Ao girar surge um ruído. Qual a relação entre o bloco bruto e o som? Segundo o professor e artista Fabrício Carvalho, sua Máquina de moer som propõe a materialidade do som, sem a pretensão de classificar o que é a música – mesmo que sugira, no contexto, que a música surge da lapidação. Queria explorar como o som ganha uma tridimensionalidade, afirma o artista, explicando que o bloco é um resíduo da construção civil, retirado com precisão por um furadeira em uma edificação, permitindo que se veja as muitas camadas de uma parede.
Já em A arte de encontrar o que você não procurava, Ricardo Cristofaro recria o que poderia ser objetos musicais (um prato de bateria? uma baqueta?) induzindo ao som que eles produzem. Trabalhei no sentido de ressignificar observando os aspectos estéticos, elucida. Da mesma forma, com uma taça quebrada guardada dentro de um invólucro de vidro, Afonso Rodrigues propõe a via do estético como caminho discursivo. A obra O sonho da soprano sugere a voz aguda que em sua fantasia quebra o copo mas não o vidro que o cerca.
Tonil Braz, aluno do IAD, também caminha pela subjetividade das desconstruções. Força desprovida de razão partiu de um imprevisto com o artista, que ao iniciar o trabalho com a alça de uma pá de pedreiro se viu levado a outro resultado, semelhante a uma garça com asas que mais se parecem com as cordas e o martelo de um piano. Esse trabalho fala do improviso, que é muito normal na música e também retrata a força das ondas sonoras, que contagiam, que tomam um espaço, explica o artista, consciente do desejo de interação do espectador que não se concretiza, mas transborda na galeria.
Do vaso exposto ao centro da mostra é possível ouvir alguns segredos de Priscilla de Paula, artista e professora do IAD. Em 12 cadernos, um vaso guarda os depoimentos gravados, que dentro do objeto ganham eco e força. O som, ali, é extremamente convidativo. Já em Ad Ritos: Paragem, a também professora Adriana Gomes reúne em vídeo e áudio um sonho que teve. Na sequência de imagens, a artista surge dançando com vários homens em espaços diferentes e com sobreposições de sugestivas figuras. No áudio, uma trilha instrumental dos Beatles, confirmando a potência das muitas sugestões e como, juntas, formataram uma narrativa clara e extremamente sentimental.
Aquela gestualidade é livre e poderia indicar a eloquência dos movimentos das mãos, comenta Cristofaro sobre o trabalho Estudo de l’application du chant aux paroles quant a la prononciation, do Coletivo Tribêra. A obra se forma com uma tela tomada por pequenas fotografias de gestos deliberados, sugerindo a linguagem da libra, e um áudio falado em francês sobre o canto e a fala. Em outra via, Eliane Bettocchi em seu Dueto se referencia na estética barroca demonstrando a completude dos pares.
Baú de lembranças
Instigante e altamente emocionante, o trabalho de Valéria Faria não aposta nos sons e nem mesmo nos objetos musicais. Suas assemblages, que tomam uma parede da galeria, é um amontoado de vozes escondidas em objetos familiares. Meu trabalho não tem o alcance da sonoridade, ela não é um elemento no meu processo artístico, pontua Valéria, apontando para o tempo e as questões ligadas à memória como suas principais preocupações na arte. Dizendo-se uma acumuladora controlada, ela apresenta mamadeiras, pratos quebrados, pedras, conchas e outros materiais, tudo reunido em grupos distintos, que referem-se a sons de seu passado. Dentro dos meus guardados havia muita sonoridade. Esses objetos me remetem aos barulhos que não esqueci, afirma sobre seu Cantos guardados, uma música dos afetos.
O QUE VEJO É
MÚSICA
Coletiva
Visitação de segunda a sexta, das 8h às 18h. Sábados e domingos, das 13h às 18h. Até 28 de julho.
Centro Cultural Pró-Música
(Av. Rio Branco 2.329)