‘Ator com ISO 9000’
Quem acompanha a produção recente do cinema nacional certamente já viu o ator paulistano Marat Descartes em ação na telona, provavelmente interpretando algum tipo complexo, atormentado por angústias, fracassos e agruras cotidianas, sem, contudo, perder o reconfortante ar de "gente como a gente". Sua versatilidade, suas escolhas artísticas e seu envolvimento com o fazer cinematográfico o tornaram o homenageado da 17ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em um ano em que o evento oportunamente discute os "Processos audiovisuais de criação", lançando o olhar sobre os processos de produção dos filmes e não apenas nas obras prontas. Para a coordenadora geral da mostra, Raquel Hallak, a homenagem a Marat contextualiza bem esta temática. "Ele é um ator que participa ativamente de todo o processo criativo do filme, não apenas chega e atua", justifica.
Cria do teatro, Marat Descartes atuou em mais de 40 espetáculos nos palcos, tendo recebido o Prêmio Shell 2006 de melhor ator por seu trabalho em "Primeiro amor" (2006). Na sétima arte, onde tem mostrado ser o novo "faz-tudo" da produção nacional, atuou em mais de 20 filmes, entre curtas, médias e longas, acumulando títulos alternativos como "Super nada" (2012) – de Rubens Rewald, pelo qual recebeu o Kikito de melhor ator no Festival de Cinema de Gramado -, "Os inquilinos" (2010) e "Trabalhar cansa" (2011), mas dando também as caras em sucessos comerciais como o "O tempo e o vento", de Jayme Monjardim.
Em Tiradentes, o público poderá conhecer parte do diversificado trabalho do ator na Mostra Homenagem. Na noite de abertura, "Quando eu era vivo" marca o reencontro com a dupla que o projetou nas telas: a direção é de Marco Dutra, e a montagem é de Juliana Rojas. No longa, que tem pré-estreia no festival no dia 24, às 21h, no Cine-Tenda, Marat divide a cena com Antônio Fagundes e com a cantora Sandy em um profundo thriller psicológico. O público também poderá conferir na mostra o longa "Uma dose violenta de qualquer coisa", de Gustavo Galvão; o média "E além de tudo me deixou mudo o violão", de Anna Muylaert; e os curtas "145", de Gero Camilo, "A caminho de casa", de Paula Szutan e Renata Terra, e "Fala comigo agora!", de Karina Ades e Joaquim Lino. A programação inclui, ainda, a única incursão de Marat na direção, o curta "Uma confusão cotidiana", realizado em 2006. Em uma descontraída conversa por telefone, o ator fala à Tribuna sobre a homenagem, sua trajetória profissional, o cinema brasileiro e o Festival de Tiradentes.
Tribuna- Ao longo de seus 17 anos, a Mostra de Tiradentes vem homenageando grandes nomes da cinematografia nacional. Como é ser um destes?
Marat Descartes – Fiquei muito feliz justamente pelo perfil da mostra, de apoiar formas mais alternativas de cinema. Minha carreira cinematográfica é relativamente curta, mas acabou sendo marcada por isso: muitos filmes de qualidade que fogem aos padrões comerciais. Lembro que pensei: ‘Poxa, estou chegando perto dos 40 anos, atingindo metade da vida ainda, será que meu trabalho já merece uma homenagem desse porte?’ (risos). Mas o interessante é isso: eles costumam homenagear pessoas ainda em início de carreira, mas com uma trajetória consistente, alguma marca no cinema nacional. É muito bacana, como se fosse uma espécie de ISO 9000 para o seu trabalho, como se dissessem : ‘Olha, você está fazendo tudo certinho, continue por esse caminho" (risos). Além de tudo, é muito gratificante poder celebrar este momento com amigos e parceiros de longa data, como o Gustavo Galvão e o Marco Dutra (cineastas), entre muitos outros.
– A participação em filmes alternativos foi algo que você buscou ou foi acontecendo naturalmente?
– Dificilmente a gente, como ator, escolhe um longa, a gente é escolhido. Em alguns casos, como nos filmes do Marco (Dutra), com quem tenho muita proximidade, leio um roteiro e sei :’sou esse personagem’. Filmes assim são uma carta interessante para se ter na manga, porque permitem uma participação mais artesanal do ator no processo cinematográfico, de você poder criar com a equipe em todas as etapas, desde os profissionais de cenografia aos de fotografia. É algo que eu trago do teatro: o entendimento do que meu personagem significa no contexto de uma obra, o que eu posso acrescentar nos diversos níveis da narrativa. Não é um processo individual, e nem sempre dá para fazer isso. Em filmes do circuito comercial, que costumam ser produções mais grandiosas, esse diálogo é muito difícil. Muitas vezes há profissionais envolvidos no filme que nem sabem seu nome e vice-versa (risos). Alternativo ou não, o cinema é sempre uma indústria, que permitirá mais ou menos intervenções artesanais e, para mim, todas as experiências são válidas.
– Em entrevistas, você já disse que tinha medo da câmera. Como saiu daí para ser um dos mais atuantes do cinema brasileiro?
– Fazendo TV com mais frequência. Antes de me dedicar ao cinema, fiz pequenas participações para entender os mecanismos do audiovisual. Na Escola de Artes Dramáticas (EAD) da USP, também fiz um módulo de interpretação para câmera, e o professor dizia que a câmera me adorava. Mas eu pensava comigo : "Ah, acho que ela não gosta muito de mim, não" (risos). Não me sentia à vontade mesmo, mas me envolvi em produções de alunos da universidade e participei de produções para a TV. Entender como funciona o set me ajudou a perder o medo. Quando rolou o primeiro protagonista em um longa, me apaixonei de vez por estar ali todos os dias com toda uma equipe, criando a partir do um mergulho em um universo que você divide com aquelas pessoas… A esta altura, foi como ouvir: "Vai, meu filho! É isso mesmo." E eu fui (risos).
– Seus personagens costumam ser muito complexos, densos. Como funciona seu processo de criação?
– Sempre percebi uma angústia muito grande nos personagens, um grande problema interno que de alguma forma os fazia muito complexos. Mas procuro sempre pensar neles sem muita verborragia, em geral eu prefiro – e costuma dar um resultado muito melhor – ter uma conversa com o diretor e/ou roteirista para ter um entendimento profundo do que ele quer dizer com o filme, com a trajetória do personagem. Para mim, é muito importante entrar no set e "respirar" aquele filme, com máxima verdade, máximo envolvimento. Tem toda uma equipe te situando em contextos sociais, econômicos e culturais, e acredito muito neste tipo de trabalho. Os outros traços, como a composição física propriamente dita, vão aparecendo em consequência disso.
– O curta que você dirigiu, "Uma confusão cotidiana", vai ser exibido na mostra de Tiradentes. Você tem vontade de dirigir mais vezes?
– A princípio, não, mas se uma história me envolver tão drasticamente a ponto de eu querer compartilhá-la, fazer com que as pessoas sintam o que eu estou sentindo, pode ser. Achei muito legal o Cléber Eduardo (curador da Mostra de Tiradentes) topar passar o filme, que foi absolutamente feito na raça e na paixão. É assim que se faz cinema, se as pessoas ficarem esperando um financiamento aparecer, acabam não fazendo nunca. E "Uma confusão cotidiana" foi a primeira aventura coletiva que tive com uma turma de amigos da EAD. Eu estava estudando Kafka e me apaixonei loucamente por um de seus contos, a ponto de achar que queria transformá-lo em filme, mas foi tudo do próprio bolso, sem grandes pressões, foi muito prazeroso.
– Como você vê o atual panorama do cinema nacional?
– Estou achando muito legal haver tanta produção. Só em 2013, foram mais de 200 filmes nacionais, nunca se produziu tanto. Mas é preciso dar um passo em relação à distribuição e à exibição. Muitas vezes os cidadãos não têm acesso a bens que eles mesmos ajudaram a construir, os filmes nacionais são muito mais assistidos no exterior do que no próprio Brasil. Claro, depois dá para ver o DVD, mas perde-se o barato da experiência coletiva de estar em uma sala – de preferência cheia -, usufruindo daquela obra, faz a gente refletir o filme de forma diferente. Faltam políticas públicas para que isso aconteça. Estão surgindo iniciativas neste sentido, e espero que elas completem essa ponta do processo, porque não adianta a produção ir muito bem, e a classe artística ter que pedir no Facebook: "Gente, vão assistir ao filme tal", "Olha o meu filme bonito" (risos). Além de ser um tanto egóico, muitas vezes restringe o público à própria classe artística.
– Como você avalia o papel da Mostra de Tiradentes na evolução do cinema nacional?
– Acho importantíssimo. Como espectador, fui só uma vez e fiquei impressionado com a organização. Diferente de muitos festivais de cinema, em Tiradentes você realmente consegue assistir a filmes, e muitos, porque a logística permite isso. Também acho bacana ser logo no início do ano, já mostra o que virá pela frente no cinema nacional, fora o fato de apoiar filmes autorais, independentes, dar a eles um grande lançamento, isso ajuda a alavancar carreiras de atores, diretores, enfim, dos realizadores de cinema. Vida longa à mostra!