Livro de referĂȘncia
“Papai, queria ter o cabelo igual ao da moça da biblioteca.” Anos depois de minha filha me dizer de uma de suas referĂȘncias na escola, encontro a mulher de cabelo black power, com uma faixa turbante laranja e um sorriso emocionado pela revelação. Entre livros, Gisele Lopes dos Reis SimĂ”es, em suas prĂłprias palavras, divide seu “tempo entre o trabalho tĂ©cnico, da organização, e a sensibilidade do pedagĂłgico, de contar uma histĂłria que diz de valores” numa sala do ColĂ©gio Stella Matutina que carrega o nome de uma das religiosas mais atuantes na histĂłria da educação local. Nascida NĂcia Paschoal, IrmĂŁ AglaĂ© vive na biblioteca escolar. “Ela foi diretora do colĂ©gio durante muito tempo.
Foi professora do CES/JF e de algumas outras faculdades da regiĂŁo. Foi orientadora vocacional e uma figura muito importante no cenĂĄrio educacional da cidade. Todos gostavam muito dela, porque, ao mesmo tempo em que era firme, tinha um jeito de acolher os alunos e os funcionĂĄrios do colĂ©gio”, conta Gisele, que nĂŁo chegou a conhecer a ex-diretora, morta aos 93, na Belo Horizonte de 2011, que escreveu “O jogo das contas de vidro Ă luz da filosofia”, sobre Herman Hesse, e “A questĂŁo do poder em Michel Foucault”.
Com IrmĂŁ AglaĂ©, Gisele compartilha a certeza de que a educação Ă© composta de referenciais. NinguĂ©m se forma Ă deriva. E todo discurso Ă© uma espĂ©cie de porto. “De vez em quando, os professores vĂȘm para fazer pesquisas, e eu tambĂ©m vou Ă s salas. Falo dos livros que eles tĂȘm que ler ou de algum tema que diz respeito Ă biblioteca, como as enciclopĂ©dias. Fui, tambĂ©m, nas turmas do Ensino MĂ©dio para falar de apropriação cultural, despertĂĄ-los para novos questionamentos”, orgulha-se ela, aluna do bacharelado interdisciplinar de ciĂȘncias humanas da UFJF, curso que a fez retornar Ă s salas de aula apĂłs decidir-se por nĂŁo concluir letras. “O legal Ă© quando um aluno vem e fala: ‘Tia, escrevi um livro!’. Que legal, me mostra depois, eu falo. SĂŁo frases soltas, mas eu digo que estĂĄ muito bom. Falo: agora faz um desenho, escolhe uma capa, escreve seu nome, invente um nome de editora. Ă o primeiro, daqui a pouco vem outro”, indica a mulher de riso fĂĄcil.
Filha da Preta e do Nem
Aos 8 anos, a filha da costureira Maria Aparecida, a Preta, com o auxiliar de escritĂłrio Moacir, o Nem, irmĂŁ da Gislaine (quatro anos mais nova), teve as brincadeiras na rua permitidas. “Nasci no Dom Bosco, bairro de periferia, com problemas que hoje sĂŁo mais sĂ©rios do que quando morava lĂĄ. Frequentava o Grupo EspĂrita Semente, que era perto de casa, mesmo sendo catĂłlica”, pontua Gisele. “No dia de SĂŁo Cosme e SĂŁo DamiĂŁo, minha mĂŁe deixou eu e minha irmĂŁ irmos pegar bala. Ela falou assim: Olha! O Ășnico lugar que vocĂȘ nĂŁo pode ir pegar Ă© no centro. Eu falei que era lĂłgico, atĂ© porque nem tinha dinheiro para pegar ĂŽnibus. SaĂ com as outras crianças. E fomos num lugar que era um galpĂŁo, superaberto, com o teto cheio de bandeirinhas coloridas, um bolo de coco gigante, mulheres com turbante e roupas brancas. Tudo lindo, mĂșsicas lindas, a gente rezou e comeu aquele bolo maravilhoso. Peguei o saquinho e guardei, achando o mĂĄximo ter ido lĂĄ. Cheguei em casa e contei para a minha mĂŁe. Ela gritou: ‘Gisele, vocĂȘ foi no centro!’. Eu falei que nĂŁo, que era no Dom Bosco. AĂ ela explicou. Morremos de rir”, recorda-se ela, crescida entre a rigidez e o amor. “Minha mĂŁe sempre disse que, se vocĂȘ Ă© preta, precisa estar sempre pronta para encarar o que vier, precisa estar arrumada, precisa saber falar, precisa estar preparada para se defender. Falava do medo. E tambĂ©m de um orgulho de termos que representar. Ela dizia muito que nĂŁo podĂamos ser chacota de ninguĂ©m.
No colĂ©gio, fui chamada de macumbeira, que meu cabelo era ruim, e eu era chorona. Ela foi me defender uma vez, conversou e disse que nĂŁo permitia aquilo comigo, mas me disse que da prĂłxima vez era para eu me defender sozinha. EntĂŁo, eu precisava ter argumentos. Quem eu era?”, questiona a jovem que se formou procurando respostas profundas, seja no ColĂ©gio Nossa Senhora de FĂĄtima, onde fez o ensino fundamental, seja no ensino mĂ©dio cursado no Compacto. Sonhou ter floricultura, ser astronauta, professora e nutricionista. E fez um tanto de outras coisas: trabalhou no atendimento da Biblioteca Central da UFJF, corrigiu provas, foi monitora de espanhol numa escola, depois de inglĂȘs, e auxiliar num hospital. Em 2013, foi admitida no colĂ©gio cuja biblioteca hoje Ă© de sua responsabilidade.
MĂŁe do AntĂŽnio
Aos 30, Gisele carrega no ventre AntĂŽnio, com 7 meses, fruto do casamento de trĂȘs anos com Julio. “Formamos uma nova famĂlia no encontro de casas tĂŁo diferentes. A famĂlia dele Ă© de origem alemĂŁ. Na minha famĂlia, questionamos de que parte da Ăfrica o avĂŽ do avĂŽ veio. Minha mĂŁe conta que a avĂł dela era Ăndia, comia na cuia, com a mĂŁo, de cĂłcoras”, diz a profissional que se pauta, diariamente, na diversidade para contribuir para a formação de pensares distintos e libertos. “Todo profissional tem uma atuação polĂtica, no sentido de se posicionar e mostrar que estĂĄ atento. Eu como mulher negra preciso me posicionar enquanto ser humano. Ă importante se informar para isso”, comenta ela, ouvido a postos para os pequenos e para os grandes. “Criança Ă© muito sincera, nĂŁo tem o filtro que temos o tempo todo. JĂĄ os adolescentes sĂŁo problematizadores, e eu sempre converso com eles”, conta ela, que colou tirinhas do personagem Armandinho sobre as palavrinhas mĂĄgicas pela escola toda, onde encara o aprendizado diĂĄrio da maternidade. “Como vou formar um menino nesse mundo machista?”, indaga.
Gisele, em sua delicadeza, diz da importĂąncia do conhecimento, nĂŁo apenas do que se faz em sala, mas tambĂ©m do que se faz pelos livros. Ă no discurso que a gente se faz aceito, diz ela, em seus atos. Qual livro gostaria que AntĂŽnio lesse? “‘Sejamos todos feministas’, da Chimamanda Ngozi Adichie. Ă um livro que tem exemplos bem palpĂĄveis de situaçÔes cotidianas. Por que quando chega um homem e uma mulher a um restaurante o garçom pergunta a ele o que eles querem? Porque dĂĄ ao homem a conta para pagar? Eu vivo isso no meu dia a dia. Todos ficam espantados quando conto que nĂŁo sou eu quem lava a roupa, que faz comida. Mas nĂŁo estou em casa, e ele cozinha muito melhor que eu. Por que nĂŁo?”