Outras ideias com Maria das Dores Queiroz Pacheco
“Cotinha, você tinha que fazer escola de belas artes!”, dizia a professora ao olhar a menina desenhando enquanto ensinava as lições ao restante da turma. Maria das Dores Queiroz Pacheco, que foi Maricota e hoje é Cotinha, com seus 91 anos, desenhava porque já havia passado pela mesma quarta série no ano anterior. Por não haver um nível acima na única escola do lugarejo onde morava, escolheu refazer tudo para não sair da carteira. Nascida em Barra Longa e criada em Barra Longa, criada no povoado de Gesteira, município destruído pela lama da recente tragédia de Mariana, Cotinha não tem mais os desenhos daquele tempo para mostrar. Na juventude, as águas levaram. “O ribeirão represou o rio e encheu tudo. Os tijolos não era queimados e derreteram tudo. Só sobrou o telhado, o assoalho e a máquina de costura”, recorda-se. Décadas depois, com os filhos, netos e uma bisneta nascidos, decidiu criar novos traços.
“Mamãe ilustrava o caderno da gente quando éramos crianças”, lembra a filha de Cotinha, Marta Sabir, formada em educação artística e pedagogia. “Quando minha filha passou em artes, mamãe falou: ‘Vovó não realizou esse sonho e está feliz por você'”, conta. No sexto período do Bacharelado Interdisciplinar em Artes e Design da UFJF, Inez, que deseja se especializar em moda, não se bastou em seguir o sonho da avó e matriculou Cotinha, esse ano, num curso de extensão da universidade, que ensina técnicas do desenho e o domínio da aquarela. Amiga de sala da própria avó, a jovem filma as atividades e compartilha exercícios. Tem gostado, dona Cotinha? Ela sorri. “Sempre gostei dessas coisas. É bom demais.”
No fio da memória
Quando encontro dona Cotinha, ela está a bordar uma toalha de quadrados verdes e brancos, numa sala com vista para a Mata do Krambeck, no Bairro Industrial, na casa da filha Marta, onde mora desde 2007. Chegou lá com o marido, Jairo. Lúcido, ele enfrentava problemas de visão e de próstata. Saudável, ela encarava os primeiros lapsos de memória. Como yin-yang, o casal se complementava, um com o corpo são e o outro com a mente sã. Em 2009 a despedida se fez. “Ela conheceu ele com 18 anos, casou com 24, viveram 61 anos, fizeram Bodas de Diamante. A perda dele foi muito difícil para ela”, conta a filha Marta. Em meio às saudades, o Alzheimer se apresentou. “O médico pediu que estimulássemos a memória dela, porque as lembranças antigas são preservadas, mas as recentes não. Em 2010, quando fomos comemorar o aniversário dela, convidamos as melhores amigas e uma delas, que é professora de pintura em tela, incentivou-a a fazer. Uma tia lembrou que ela bordava bem e incentivou também”, recorda Marta. “Mamãe hoje pinta e borda.”
Papel de mãe
“Já vivi de tudo um pouco”, exalta a senhora de sorriso fácil. Viveu mesmo. Casada, saiu de sua terra natal e seguiu os passos do marido. “Estranhei muito. Nunca tinha saído de casa. Chorava muito. Depois de um ano que fui ver minha mãe. Quase que eu desmaiei”, lembra. Agente estatístico, o marido se mudou diversas vezes, viveu tempos de escassez e conheceu algumas pequenas bonanças. Os oito filhos nasceram em Belo Horizonte. Em 1968, um deles, com um ano e oito meses, se foi, vitimado pelo crupe. Exatos dez anos depois, aos 18, uma filha também deu adeus, vitimada por uma infecção que começou na garganta e chegou ao coração. Unidos, Cotinha e Jairo seguiram firmes – “Nunca tivemos uma discussão. Até hoje não gosto disso, de falar palavrão”, assegura -, estudaram todos os filhos, que lhes deram 12 netos e uma bisneta. “Meu pai sempre falou que queria que tivéssemos a mania de ler livros. Além de ter nos ensinado o temor de Deus”, pontua Marta, filha da Cotinha, que é assídua na igreja presbiteriana.
Bordando os dias
Dona Cotinha, a mais velha da turma de aquarela, pintou seu primeiro quadro em 2010, com a ajuda de uma professora. O mais recente é de novembro de 2015. Nesse meio-tempo distribuiu suas criações entre a família, como faz com os bordados. “Desde mocinha que bordo. O certo é esconder os pontos no avesso, mas a vista não ajuda”, justifica-se. “Minha mãe viveu 103 anos”, conta ela. E a senhora, quer viver quantos anos? Primeiro ela ri. “Quero viver bastante, só não quero ficar esclerosada, dar trabalho”, diz, para logo completar, entoando a famosa canção publicitária: “O tempo passa, o tempo voa…”. Esse tempo, que voa, faz piruetas, nessa vida que “esquenta e esfria”, sempre tem resposta. Mais de 80 anos após ouvir a sugestão da professora, Cotinha faz artes. Belas artes.