Artistas de rua reforçam papel democrático do Calçadão da Halfeld
Sil Andrade, Adão Sérgio e Jorginho ocupam espaço vibrante da cidade e acreditam na importância da troca com o público em meio à correria do dia a dia

O trajeto agitado do dia a dia muda o ritmo. Há quem pare e quem seja afetado enquanto segue até o seu destino. De repente uma música chama a atenção, uma estátua viva faz arregalar os olhos ou o movimento da capoeira quebra a monotonia. “De vez em quando alguém me conta uma história, como quando canto a música que tocou no casamento de uma delas, ou quando outra lembra alguém que já faleceu ou que não vê há muito tempo”, conta o cantor Adão Sérgio, antes de ser interrompido por um transeunte, que faz questão de perguntar por onde ele tem andado e avisar a quem o espera para ligar o microfone, porque está prestes a escutar “o nosso Fernando Mendes”. As lojas ocupam posição de camarote, mas os ingressos são igualmente gratuitos para todos. É assim que o Calçadão da Rua Halfeld se torna um palco para os artistas públicos, que tem como objetivo ocupar os espaços livres e ociosos para “apresentar arte para a cidade”, como destaca Sil Andrade, que há 11 anos ocupa o Recuo da Bossa, em frente a um dos bancos da rua. A primeira música que tocam, ao lado de Jorge José da Silva, o Jorginho, é “Princesinha de Minas”, para a qual, aliás, se dirigem todos os dias: “Juiz de Fora é assim, quem não conhece venha ver, a cada dia uma cidade melhor para se viver”.
Desde a inauguração do Calçadão, em 1975, com a possibilidade de os pedestres circularem livremente pelo trecho, esse potencial criativo bem no centro da cidade levou muitos criadores a usarem aquela rua como inspiração. É o que foi feito na década de 1980 por escritores como Edimilson de Almeida Pereira e Fernando Fiorese, que faziam um varal de poesia no local e vez ou outra ainda contavam com performances. Ou mesmo como Carlos Bracher fez, em 2022, quando pintou o Cine-Theatro Central cercado pelo povo, ou ainda no show “surpresa” de Lô Borges, nos anos 2000, em meio a uma manifestação dos professores, em uma história que a Tribuna contou na última semana. Para Sil, a vitalidade que a arte traz para os centros é tão necessária quanto qualquer outro elemento: “Nós alimentamos a alma das pessoas”, diz ela.
Não à toa, os artistas públicos ou artistas de rua ocupam da Halfeld à Wall Street e à Champs-Elysée. Existe sempre gente se apresentando para o público que passa em todo canto do mundo, e com a maior diversidade de ritmos, estilos e motivos para querer estar lá. No caso de Adão Sérgio, por exemplo, a vontade começou quando, depois de uma vida inteira trabalhando com seguros, capitalização e também como engraxate, ele se aposentou e percebeu que podia recuperar uma paixão antiga. “Ser artista público, pra mim, é uma realização. Eu ia gravar aos 35, mas me desencaminhei. Agora, não cobro ingresso e as pessoas param pra me ouvir. A maioria das pessoas agradece e quando não aparecemos, reclamam. Isso é o que faz a gente continuar”, conta ele.
Já Sil está no mesmo ponto, chamado por ela de Recuo da Bossa, desde 2015, quando lançou o EP “Treminhão, Mineirices e poesia”, em que homenageia compositores da cidade. “A gente precisava ensaiar, então começamos a circular pelas ruas”, relembra. Desde então, ela não quis mais parar, e conhece bem cada pessoa que canta por lá também. Exemplo disso é Jorginho, de 49 anos. Ele toca no Centro há pouco mais de um ano, e vem do bairro do Sagrado todos os dias para isso, com suas músicas autorais e placas que pedem para ajudar um artista. “O Jorginho ajuda a família dele com o dinheiro que ganha aqui. É o tipo de pessoa que a cultura da cidade precisa abraçar”, destaca ela.
De quem é a rua?
Encarar a rua como um palco, no entanto, tem diversos desafios, que são listados por eles: a dificuldade de transportar ou guardar os equipamentos, a falta de valorização do poder público e a pressão dos setores públicos e privados. Isso ocorre porque, como explicam, a compreensão do que é permitido para a classe muda conforme a gestão. “Já tive problemas porque interpretaram que o microfone que eu trago é um equipamento, que não seria permitido. Mas sem ele, inviabilizam o meu trabalho”, explica Adão. Para ele, os últimos meses têm sido mais difíceis nesse sentido, principalmente por discordâncias de compreensão frente à instauração oficial do Centro Histórico, que tombaria a Rua Halfeld e traria mais mudanças para eles. “Teve um casal que já não vai mais a baile, mas que dança na minha frente. Teve um menino que ficou dançando Michael Jackson pra mim. Será mesmo que eu tô atrapalhando alguma coisa?”, questiona.
Enquanto tocam, Sil responde a vários pedestres sobre onde estão e quando vão acontecer os shows. Os dois lembram quem veio antes deles e quem continua sendo inspiração, como Geraldo Pereira e Mamão. Mas há também quem venha do espaço privado e se incomode, querendo ser “dono da rua”, como acrescentam eles. “A rua precisa ser democrática. Se não, fica só um monte de loja e gente que não se encontra. Temos que valorizar quem é daqui, os nossos, o que nós fazemos”, destaca Sil.
Uma questão de sobrevivência
Sil continua a cantar, desta vez a música “Nos bailes da vila”, de Milton Nascimento, na qual se ouve o verso “Todo artista tem de ir aonde o povo está”. Para os entrevistados, isso se trata de sobrevivência, em todos os sentidos. “Eu não vivo disso, mas o dia que isso não acontece me faz falta”, explica Adão, sobre o dinheiro que usa para complementar a renda de sua aposentadoria. É também uma falta que sente para a própria existência. “Quando vejo um dia bonito e não posso estar aqui, me faz mal”, continua. Mas esse não é só um projeto de vida, para eles: é um projeto de futuro, que envolve toda a comunidade. “É a minha sobrevivência, onde dialogo com minha alma e essência. Estou em contato com a comunidade e pretendo continuar assim”, finaliza Sil.
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