Além das raízes: identidade e ancestralidade marcam histórias de trabalho em Juiz de Fora

Experiências de chef, artesã e trancista destacam como raízes culturais estruturam modos de trabalho


Por Mafê Braga e Mariana Souza*

16/11/2025 às 06h00

Juiz de Fora é uma cidade plural e reúne trajetórias marcadas por diferentes origens culturais. A cidade, que historicamente recebeu fluxos de imigração e formou colônias sobretudo alemãs e italianas, segue sendo espaço de circulação e encontro: dados do Censo Demográfico de 2022 mostram que mais de 1.950 moradores nasceram em outros países, enquanto muitas famílias locais preservam vínculos com antepassados estrangeiros. Esse mosaico de identidades aparece no cotidiano e no trabalho de quem transforma referências familiares em ofício. A seguir, a Tribuna conta três histórias que mostram como essa herança se materializa em empreendimentos que resgatam práticas, técnicas e tradições de diferentes continentes.

Culinária com novos ares

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‘O restaurante é uma extensão da casa’, afirma o chef Edson de Souza (Foto: Leonardo Costa)

Formado em engenharia civil e gastronomia, Edson de Souza é chef e proprietário do restaurante Cantina do Bexiga. Ele conta que quando retornou a Juiz de Fora depois de período em São Paulo, se sentiu inspirado. O empresário, que já tinha gerenciado dois estabelecimentos na cidade, a Churrascaria Ponto de Encontro e a Churrascaria do Gordo, conta também já ter trabalhado com restauração, o que o levou a observar espaços gastronômicos.

Descendente de italianos, ele idealizou um novo espaço juiz-forano, cujo nome remete ao Bairro Bela Vista em São Paulo, marcado pela forte identidade italiana e popularmente conhecido como “Bairro do Bixiga”. Assim, seu estabelecimento contém elementos que remetem ao país: a proposta aparece na decoração em vermelho, verde e branco, nos quadros de filmes clássicos e no cardápio de pratos tradicionais.

O chef destaca que a Cantina opera com produção própria: massas, molhos e sobremesas são feitos desde o início. Ele lembra que, em seu antigo estabelecimento, os pratos mais procurados eram a lasanha de bacalhau e o ossobuco, um corte de carne bovina famoso na culinária italiana, mas afirma que, hoje, a lasanha à bolonhesa é a opção mais pedida. Outro ponto citado por Edson é a carta de vinhos, que reúne mais de 70 rótulos selecionados por ele, que também é sommelier.

“O nosso foco é o pertencimento, nós sentimos que o restaurante é uma extensão da casa. Aqui é um espaço intimista, um ponto de encontro entre amigos, parentes, casais e até turistas. Quando fechamos, em plena pandemia, as pessoas pediam pela nossa volta, pois muitos conheciam, iam com familiares, namorados… Acho que a comida acaba trazendo essa emoção. Eu considero, por exemplo, que é a coisa mais emotiva que se tem em viagens, porque as pessoas viajam e querem encontrar lugares em que ela se sintam acolhidas, com essas características italianas”, afirma.

Criações alternativas

Venezuelana, Ana Gabriela Ramírez chegou ao Brasil em 2016 com os dois filhos. Ela relata que deixou o país por causa da situação econômica e política e, depois de uma temporada em Roraima, mudou-se para Juiz de Fora devido ao cunhado, que trabalhava em um restaurante da cidade. Na época, sua filha havia sido diagnosticada com epilepsia, o que a levou a permanecer mais tempo em casa e buscar alternativas de renda para sustentar a família.

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Ana conta que iniciou um curso de velas cujo valor era R$20 e agora, tem seu próprio empreendimento (Foto: Arquivo pessoal)

“Essa situação da minha filha me influenciou em arrumar alguma coisa que me ajudasse a ter uma independência financeira e ter mais tempo com meus filhos. Levar pra escola, voltar… Aquela correria de mãe, né? Deixar na escola, psicólogo, psiquiatra, neurologista… Então, foi uma série de situações, que me obrigou como mãe a viver de forma independente, a ter que arrumar um serviço. Foi um pouco complicado, porque na época que eu cheguei, não sabia nem falar português. Então, foi difícil, foi uma experiência única, mas tô viva graças a Deus e meus filhos também”, conta.

Nesse processo, ela iniciou um curso básico de produção de velas, que culminou na criação de sua marca, a Velitas Storevzla. Pela loja virtual, comercializa modelos feitos com cera, manteiga de coco e manteiga de karité. As peças derretem como velas comuns e funcionam também como hidratantes corporais, com fragrâncias como melancia, canela e maracujá.

Ana afirma que o processo criativo a conecta à cultura venezuelana, sobretudo no que diz respeito a criatividade. Assim, comenta que busca desenvolver peças diferentes, inclusive algumas com o uso da bandeira do seu país, e busca criar aromas que a remetem às próprias origens e memórias.

Heranças que se tecem

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Entre fios e histórias, Tatiana revive a herança que atravessa gerações e fortalece a autoestima de quem atende. (Foto: Arquivo Pessoal)

Trancista desde os 13 anos, Tatiana Bernadino de Jesus cresceu cercada pelas raízes afro-brasileiras que moldariam sua identidade e seu caminho profissional. Hoje, aos 31 anos, ela cita a mãe como sua maior referência de mulher preta e inspiração para transformar as tranças em arte, trabalho e afirmação.

“Crescendo, eu via minha mãe trançando meu cabelo e o das minhas irmãs. Sempre me senti atraída por essa arte. Comecei a fazer em mim mesma e, a partir disso, tive ainda mais vontade de aprender”, relembra.

À medida que a infância deu lugar às responsabilidades adultas, Tatiana buscou caminhos para se profissionalizar. Da rotina na padaria ao ambiente do salão, ela conta que, apesar da paixão existir desde menina, só se formalizou na área aos 28 anos.

Por um período, conciliou a dupla jornada. Atendia clientes quando o expediente permitia – algumas em casa, outras a domicílio – até conquistar espaço no mercado e transformar definitivamente as tranças em seu ofício.

“Eu já trabalhava registrada em uma padaria, há seis anos como balconista. Saía do trabalho e ia atender as clientes. Algumas eu visitava em suas casas, outras iam até a minha. Hoje, trabalho exclusivamente com tranças”, afirma.

Para Tatiana, a cultura afro-brasileira é mais que referência estética: é território de pertencimento, ancestralidade e construção de comunidade. Ela destaca que as tranças carregam história, simbolizam identidade e fortalecem a autoestima.

“As tranças não são apenas uma questão de estética, mas uma expressão da herança cultural e uma forma de conexão com as raízes. A cultura africana e brasileira influenciam muito o trabalho de quem trançamos, e é lindo ver como essa prática passa de geração em geração”, ressalta.

Além da dimensão cultural, o processo também é um espaço de acolhimento. “Costumo dizer que a trança, pra mim, é uma terapia. É onde me conecto e me encontro totalmente – tanto para mim quanto para as clientes. A trança eleva a autoestima. Eu amo ver a satisfação delas, o brilho no olhar de se sentirem renovadas”, diz.

*Estagiárias sob supervisão da editora Carolina Leonel

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